vizinhança
parece um mecanismo muito ao longe ou o ruído de um projector. deve ser o dentista. o dentista descende de uma longa linhagem de dentistas ilustres e menos ilustres, incluindo o dentista do rei dom carlos, conforme atestam os retratos e as dedicatórias fechados à chave no consultório. o consultório foi renovado nos anos setenta e perdeu o encanto das cadeiras de dentista do tempo do rei dom carlos. nos anos setenta forraram-se as paredes a azulejo azul. serviram poucos clientes, apesar da higiene, que a idade já pesava nas mãos e a vista também afunilava, como a língua da vizinhança que espalhava os maus fígados do homem, da padaria ao jardim da parada. é uma figura estranha o dentista. dir-se-ia descolado de uma das películas que guarda religiosamente em casa, mas sem fé que se multipliquem, pois o pé de meia gastou-se de uma só vez no projector. vistas de viena, uma ou outra bobine emprestada pela cinemateca, quando o rei faz anos, e uma reservada para as horas mais solitárias, por conter imagens despudoradas que fazem corar a mulher do dentista. e fazem-na rir também, mas tapando a boca com a mão para não se ver o brilho dos olhos. essas fitas, dependendo do conteúdo da lata, são projectadas, mais cedo ou mais tarde, na empena do prédio em frente. pintada de branco pelo recria. nem de propósito.
deve ser o projector do dentista e, a esta hora, deve ser boa a sessão. se não forem as vistas de viena ou a lata da cinemateca, sobra uma. o drogado do último andar deve andar empoleirado na janela do sótão a tirar fotografias ao filme. foi a mulher do dentista que me contou que o drogado tira fotografias aos filmes indecentes. mas foi a empregada da vizinha de baixo que um dia me disse que ele era drogado. ai sim? então não se vê logo pela gandulagem que sobe e desce a toda a hora?
tenho de dormir, vou pensar noutra coisa. mas ao mesmo tempo não parece o projector. pára e recomeça. pode ser um mecanismo qualquer. um relógio. um brinquedo de corda. vou ver.

a minha janela é grande e tem uma parede à volta que foi rebocada e pintada. não é um vidro pequeno e mal amanhado, preso com massa a uma armadura de metal ferrugento para deixar respirar uma marquise. da minha janela posso debruçar-me. às vezes debruço-me e vejo a mulher do dentista passar a ferro na marquise. e posso ver parte do projector se me debruçar muito. hoje não há filme, mas a fita corre. solta. o projector dorme e o projeccionista afina a bicicleta que nunca dali saiu. no telhado um gato preto tenta esgueirar-se pela janela do sótão. volto para a cama e espero não sonhar durante a hora que me resta.

douro
são marcas de gotas que se transformam em círculos. países que formam o planisfério, sobre a mesa. através do vidro soprado vejo as impressões digitais, a cara do toque. é mais fácil olhar para baixo e ver os passos que olhar para cima e ver o caminho.

guaraná
tomo um e fico leve como uma pena que cai da asa do pombo. lá em cima. dou um pulo e desapareço do laço do prestidigitador para o fundo da arca. entre a tábua e o forro. amarelo torrado, com quadrados azuis muito pequenos que ao longe parecem pintas. seda da china. areops, não estou lá. estou do outro lado da passagem secreta. volto já.

hino
está calor aqui, dentro destas paredes de carne. posso espreitar mas a luz encandeia e fere. tenho tempo. felizmente. tenho pálpebras. não consigo imaginar revoluções, nem pelo som. o som que atravessa a pele. o ultra som. só rebolar na superfície de dentro. na bandeira do meu país que é também cobertor, cortina e chão. e é aqui, só.

a evidência
de que não vemos com os olhos. de que não vemos os pontos de pó que arranham a retina. os pontos de pó que se alojam por baixo das pálpebras. se não quisermos.

l’évidence
se observarmos com atenção é no contorno que encontramos a verdadeira essência. a ideia de que a essência é algo de inatingível, de intangível, é falsa. é um mito que nos conforta a preguiça de olhar. a essência é a marca que fica no mundo. o sítio onde o pó não pousa, a sombra que se justapõe, o decalque, o molde que permite que nos possamos inventar.

l'évidence de la vie
se o sono nos tira a vida, por instantes, se a põe em suspenso, se nos ata ao córtex as fitas dos dias, por ordem, sem ordem, pela ordem inversa. não sei.

acupunctura
sentei-me a olhar e perdi as horas. despertaram-me uns pontos luminosos que muito lentamente me devolveram o espírito, pequenos faróis para náufragos com esperança. tocaram-me e lembraram-me que a noite ia ser quente, que as árvores não são simétricas e que o mundo não é redondo nem é o único mundo que existe.

aqui em baixo está fresco. debaixo da película que envolve os dias novos. novos e inteiros. a estrear. dias novos de céu limpo e vento moderado, ondulação de sul. daqui de baixo vejo tudo como se o mar fosse projectado. tenho sal nas pestanas. sal na ponta dos dedos. aqui, sozinha, posso tudo. posso com tudo. posso ser tudo.

certas coisas estão dentro e estão fora. como cascas de cebola.