devir
vim cá hoje pagar a minha dívida. não me conheces, nunca me viste ou talvez, sim, pelo canto do olho. mas uma vez tocaste-me. eu estava vestida de preto, com um cachecol verde e, quando olhei, as árvores eram verdes. não era um verde cor de árvore, era um verde cor de cachecol verde. senti-me um conta-gotas que espalha cores improváveis e, no entanto, tão próximas das cores verdadeiras. um conta-gotas numa imagem. esse foi o dia em que estive mais perto da verdade. rodeada de árvores verdes cor de cachecol. toma este beijo. devo-te o meu devir.

salto
subi os degraus dois a dois, como se a escada rolasse sozinha. não vi a porta e continuei a subir. no caminho, espirais na cabeça que confundi com vertigens. o último degrau não era. se ali não estivesses para me agarrar.

cinco manias a pedido
uma
guardar os autocolantes da fruta.
duas
tirar notas sem as apontar num papel.
três
ver caras nas coisas.
quatro
pensar que estou quase a acabar, antes mesmo de começar.
cinco
deixar pontas soltas. ideias que se colam aos dedos e os amarram à cabeça.

segui as sombras e encontrei o molde dos passos.
fui sopro e subi ao topo de mim.
de lá vi os dias, as horas e os ponteiros que indicam outros lugares.
é aqui, no meu corpo sem peso, que me sinto quase tudo por oposição a nada.
é aqui que os ventos contrários desaguam as coisas que querem contar.
se os desejos falassem respiravam por nós.

cantabile
escrevi uma frase num papel pequeno. uma frase que sugava todas as outras palavras da minha cabeça e engordava até quase não caber dentro de mim. escrevi-a à força, no papel que tinha à mão, um recibo impresso com uma fita gasta. a caligrafia saiu oblíqua. escrevi a frase muitas vezes até não restar nada. vogais e consoantes anuladas pela sobreposição dos traços. dissonância a uma só voz. harmonia.

decidi fazer um piquenique. sozinha. saí sem cesta nem manta, nem copos para brindar. meti-me no carro e deixei que me conduzisse. cheguei ao mar depois da mata onde pessoas verdadeiras faziam piqueniques verdadeiros, sentadas em cadeiras coladas a mesas que se dobram dezasseis vezes e ficam reduzidas a quase nada. não ocupam espaço, nem as mesas, nem as cadeiras. nem as pessoas. nem os garfos e as facas que levam à boca.
decidi que o meu piquenique seria no primeiro lugar onde conseguisse estacionar o carro, desde que fosse de frente para o mar. consegui. o lugar da ambulância.
não saí para comprar um gelado, mas podia muito bem ter saído. um gelado ou qualquer outra coisa que coubesse num piquenique.
dentro da minha bolha de ar condicionado, senti-me como um insecto. invisível e inoportuno. pronto a ser esmagado. um insecto de sangue frio que não sua nos dias de sol. um insecto com rodas.
conduzi-me de volta através dos piqueniques na mata. restavam só embalagens e folhas de jornais desportivos. saí do carro e meti o que consegui no lixo. amanhã voltaria com um cesto cheio de mim.

deitei-me de barriga para baixo, o sol a desenhar-me o contorno a preto. fechei os olhos e a terra começou a rodar em todas as direcções. agarrei-me aos joelhos para não cair. parecia que me preparava para a ausência de gravidade, mas só queria andar em frente, de pé como os outros. o dia e a noite sentia-os como solavancos até que deixei de perceber em que hemisfério me encontrava. os olhos, de tanto tempo cerrados, recusavam-se a abrir, afundavam-se e fundiam-se com o rosto, a cabeça, os braços, as pernas, os pés. no seu movimento constante a terra transformou-me de novo em massa disforme. e, numa última comoção, cuspiu-me de novo, inacabada, imperfeita. levantei-me e andei como pude.