liberdade é poder
ser

fora
detestava fazer marcha-atrás, mas preferia os olhos do espelho.

dentro
ouvia em eco, não se sabia porquê. ouvia as respostas dos outros enroladas nas suas próprias perguntas. aprendeu a ouvir com os olhos.

dia ao contrário
hoje o fundo é branco, não há pontos nem linhas, nem partes para destacar. hoje inundei-me de luz. inteira.





[foto: homem aranha]
abrindo
e fechando
fria
a quente

suspension of disbelief
não sei se é mesmo mar a musselina azul e se são ondas as riscas brancas que me cruzam o peito. sei que me encarregaram dos efeitos especiais e de temperar a água abrindo e fechando as torneiras. ora a fria ora a quente.

antecâmara
não via as paredes mas adivinhava-as altas, imensas, longínquas. os seus passos todos não chegavam para as alcançar. a soma de todos os seus passos, multiplicada por todas as intenções. muito menos os braços, curtos, que para pouco mais serviam que para lastro. os fenómenos da gravidade. adivinhava as paredes, na sua cegueira forçada, pelo ricochetear das palavras, devolvidas em fogo cruzado de um canto e do outro. está aí alguém? assim sem cor, sem luz, sem forma, o corpo afigurava-se-lhe pequeno e grande ao mesmo tempo. deteve-se um momento na ambiguidade. pequeno como um grão de pó. grande. enorme. maior que todas as coisas. maior que as coisas maiores. uma impossibilidade física. a menos que.
deitou-se no chão liso, inexpressivo, que o acolheu durante o esforço que fez por recordar. os círculos, os quadrados, os cubos, o cubo, o corpo. nem um som. não via a mancha branca de tinta que se agarrara à pele. não via a pele. estranho espelho aquele que lhe devolvia a nudez da alma. esbugalhou os olhos. então era assim que se era por dentro. nada. onde estariam as coisas que arquivara meticulosamente? e as que remetera para arquivo morto? não podia estar dentro. em algum sítio devia haver uma fresta por onde entrasse luz, uma reentrância que contrariasse a lisura, que detivesse o gesto. fez-se ao caminho, parando de vez em quando para se certificar de que o chão ainda lhe segurava os passos.
caixa negra

palíndromo
quando era pequena tinha um caleidoscópio redondo com um padrão por fora que parece que agora voltou. eram assim como riscas, gordas e magras, castanhas, laranja, riscas às ondas ou cornucópias, cornucópias com riscas. ou talvez fossem flores, não me lembro bem.
dentro tinha três espelhos que não me atrevi nunca a desmontar, embora muitas vezes tivesse tirado a tampa ao caleidoscópio e esvaziado as missangas e os papelinhos sobre uma mesa. a tampa era de plástico branco quase transparente mas não completamente.
e depois de dissecar o caleidoscópio pensava nesta coisa estranha e maravilhosa que é haver coisas físicas em que se pega e toca e que chocam entre si e as mesmas coisas físicas poderem ser a mesma coisa e outra coisa ao mesmo tempo. e pensava também se no meu próprio movimento circular seria como uma missanga a bater contra um espelho.