tarde azul

sigo pela berma do caminho, dedos com calcanhar, para pisar as folhas mortas que se amontoaram contra o canteiro. gosto daquele crepitar, embora me recorde sempre o jardineiro mau que nos perseguia pelo meio das malvas até à pedra-mota do meu primo. eu costumava esperar que as malvas secassem e desfazia-as com as minhas mãos pequeninas, numa espécie de jogo da glória, cujo prémio estava em cada casa: uma mão cheia de som e textura, um cheiro acre, quase bom.
um dia o jardineiro apanhou-me em flagrante a cortar os bifes para o almoço: duas ou três folhas de lírios que eu me preparava para juntar à panela. estaquei, gelada, a olhar para aquele homem enorme e velho, com um fato de macaco azul, uma grande mangueira na mão e cara de zangado. não me lembro do que disse, só me lembro da sua bocarra a abrir e a fechar, em câmara lenta como nos bonecos, pronunciando sons inaudíveis, e do calor líquido que escorregou pelas minhas pernas abaixo, regando os lírios com o meu medo.
a minha mãe saltou de dentro de mim como uma leoa e espantou o homem mau. levou-me para dentro ao colo, lavou-me e mudou-me as cuequinhas às flores cor-de-laranja. passei o resto da tarde ao sol, a fazer sopa de flores e bolos de terra.
ying yang

ela odeia roxo e pinta a unhas de azul. não fuma, mas comprou um narguilé num bazar. por ser bonito. quer pintar uma parede de cor-de-laranja a condizer. um dia. quando tiver uma parede. ama como quem come e faz bem as digestões. tem onze livros, quatro do paulo coelho e um do miguel sousa tavares. e tem o segredo. gosta de fruta, sabe línguas, mas escreve com erros. é assertiva e territorial, porque é assim que tem de ser senão. está em todas. pois claro.
ele odeia vermelho e acha que vive com paixão. caminha curvado na sua arrogância discreta. não tem compaixão. tem dores de estômago. não gosta da repartição. não tem paciência. gosta de experiências. não gosta de consequências. guarda coisas para si e isso basta-lhe. isso basta. tem muitos livros de muitos autores que não lê, mas que servem para isolar janelas e calafetar armários fechados. tem frio, mas não usa edredão. está em todas, mas não está. é escuro.
contacto

sofro
de astigmatismo profundo
de irregularidade
na curvatura da córnea transparente
ou
de falta de homogeneidade
na refracção dos meios transparentes do olho
vejo bem
vejo as pessoas
como nuvens de fumo sem contorno
e à noite
vejo as luzes como estrelas
não leio ao longe
e quando consigo ler
geral
mente
é t
arde
de
mais
telescopic walking sticks

de manhã
meço os cigarros em distâncias
da rotunda nova à rotunda da escola
da subida do paço à rotunda da fonte
da rotunda feia à entrada do parque
do parque à porta
são quatro
um para cada cavidade cardíaca


sísifo

ainda as sinto
quentes
duas mãos

tuas

duas feridas
nas minhas costas

não sinto a vertigem do vértice
não senti a subida

o corpo no lugar da pedra
não sangra

res
vala

escorado por memórias
sem peso




(foto :: kamil vojnar)