tarde azul

sigo pela berma do caminho, dedos com calcanhar, para pisar as folhas mortas que se amontoaram contra o canteiro. gosto daquele crepitar, embora me recorde sempre o jardineiro mau que nos perseguia pelo meio das malvas até à pedra-mota do meu primo. eu costumava esperar que as malvas secassem e desfazia-as com as minhas mãos pequeninas, numa espécie de jogo da glória, cujo prémio estava em cada casa: uma mão cheia de som e textura, um cheiro acre, quase bom.
um dia o jardineiro apanhou-me em flagrante a cortar os bifes para o almoço: duas ou três folhas de lírios que eu me preparava para juntar à panela. estaquei, gelada, a olhar para aquele homem enorme e velho, com um fato de macaco azul, uma grande mangueira na mão e cara de zangado. não me lembro do que disse, só me lembro da sua bocarra a abrir e a fechar, em câmara lenta como nos bonecos, pronunciando sons inaudíveis, e do calor líquido que escorregou pelas minhas pernas abaixo, regando os lírios com o meu medo.
a minha mãe saltou de dentro de mim como uma leoa e espantou o homem mau. levou-me para dentro ao colo, lavou-me e mudou-me as cuequinhas às flores cor-de-laranja. passei o resto da tarde ao sol, a fazer sopa de flores e bolos de terra.