o pára-brisas cheio de flores
pontua-me a estrada
migalhas de pão
e a lua perfeitamente centrada
na esquadria da janela
per
feição
hoje

fui
à
ama
dor
a
tapei-te os medos com ligaduras
embebidas em mel cicatrizante
meticulosamente arrancadas
à minha própria pele
dando nós pequenos
quase invisíveis
que não se prendessem na roupa
sorvi-te os grãos de ansiedade
como pólen que transformava em tempo
bebi-te as palavras ínvias
com os meus lábios feridos
que não chegaste a sentir
ficou-me o travo amargo na boca
a ferida no lugar da pele
e o frasco vazio do mel
que hei-de lavar com água quente
para aquecer as mãos
e reutilizar um dia
sem tampa
conta
minaste-me
a esperança
conta
minaste-me
as ruas
roubaste-me a voz
– menos a voz do sangue
que insiste em saltar sobre os escolhos,
profundo lençol freático de vida
que me prende a pele ao arame como molas –
tapaste o buraco no meu peito
com alcatrão a ferver
e hoje sinto sobre mim
a chaga aberta
de todas rodas de todos os carros
cheios de corpos
vazios de gente
todas as trajectórias
num atropelo constante
num atrope
lamento
sinto o corpo carbonizado
pela falta
pelo excesso
tenho de limpar do meu corpo uma cidade inteira
com todos os seus cruzamentos e intersecções
todos os seus lugares de estacionamento
todas as pessoas que se entrechocam
nos solavancos das horas
trazem esse teu olhar de estrada
quente e negro
vazio de céu
tenho de arrancar do meu corpo todos esses passos
até ser uma rua inteira e limpa outra vez
ladeada de jacarandás sem memória
que hão-de perfumar-me de anil os dias novos
afonia

tenho uma cavilha no coração
uma cavilha ou um botão
não distingo bem
por entre a dor
infecta e espessa
que se sobrepõe ao sangue
a dor de as coisas muito pequenas
pesarem muito mais que as grandes
colarem muito mais que as grandes
servirem muito mais que as grandes
estilhaçando-as

tenho algo no peito
onde não posso tocar
muito menos com a voz
sob pena de virar
gra
nada
sísifo

ainda as sinto
frias
as tuas mãos

duas feridas
nas minhas costas

não sinto a vertigem
não sinto o vértice
não senti a subida
senti o nada
sen
ti
o corpo em pedra
o corpo em cera

círio, cílio
fim do ciclo