conta
minaste-me
a esperança
conta
minaste-me
as ruas
roubaste-me a voz
– menos a voz do sangue
que insiste em saltar sobre os escolhos,
profundo lençol freático de vida
que me prende a pele ao arame como molas –
tapaste o buraco no meu peito
com alcatrão a ferver
e hoje sinto sobre mim
a chaga aberta
de todas rodas de todos os carros
cheios de corpos
vazios de gente
todas as trajectórias
num atropelo constante
num atrope
lamento
sinto o corpo carbonizado
pela falta
pelo excesso
tenho de limpar do meu corpo uma cidade inteira
com todos os seus cruzamentos e intersecções
todos os seus lugares de estacionamento
todas as pessoas que se entrechocam
nos solavancos das horas
trazem esse teu olhar de estrada
quente e negro
vazio de céu
tenho de arrancar do meu corpo todos esses passos
até ser uma rua inteira e limpa outra vez
ladeada de jacarandás sem memória
que hão-de perfumar-me de anil os dias novos