mercês

estou na estação
um negro alivia-se na esquina
e um mickey grafiti
shows me the finger
estou na estação
agora já não se compram bilhetes
é simples: carrega-se um cartão
(eu até tinha um cartão que me tinham dado
mas disseram-me que tinha caducado)
estou na estação
descobri à primeira
como manobrar os torniquetes
e vi que o pica já não pica
também já não se fuma na gaiola
e já ninguém viaja pendurado
agora o povo viaja sentado
sinto-me quase estrangeira
não sou daqui
quase não vou aqui
mas vou inteira

pós-revolução
dois aviões de guerra passam por cima do portão
e desaparecem atrás de um telhado
depois mais um e mais outro avião
videogames com o dinheiro do estado
são feios como o dia que se pôs
cortam o céu  às tiras como tesouras
e fazem um ruído estéril de lâmina romba
eu, pelo menos, estou doente
e não se nota
não poluo, não me imponho
e ainda sonho
mesmo que não voe
a cinza prendeu-se à teia
e eu, sem medo da aranha
enxotei-a para fora
tenho filmes e capítulos pela frente
filhos e casas para habitar
e vejo que as ervas estão em flor
flores feias são flores
mesmo que se enganem na cor
revolução

no quintal o limoeiro teima em carregar-se de limões
e a salsa espalha-se como erva daninha
mas não é
lá dentro
a minha mãe está no youtube
a aprender a pintar rosas
e a desenhar narizes
e eu a traduzir um romance
sobre pessoas infelizes
enquanto a chuva lava as ruas
(diz que é bom para as alergias)
e cancela programas de fim-de-semana
(visitas ao jardim zoológico
trocadas pela urgência do supermercado)
hoje é o feriado dos cravos
mas nem vê-los no continente
muitos aproveitam para ir ao cemitério
outros ficam em casa
presos a filmes requentados
alguns nunca se levantam
outros acordam sentados
prioridade nas rotundas

ainda vou ver o teu perfil de vez em quando, sim
para nada
e ainda sei o teu número de cor
para nada
mas já não me rejo pelas tuas horas
e muito menos pelas tuas desoras
um dia
há-de regressar a cor às minhas unhas
que trago, por estes dias, maltratadas
de tanto esgravatar para sair de dentro de mim
hei-de pintá-las de vermelho desejo
de sentir o rosto
de sentir no rosto
de sentir
e de os
tentar um sorriso menos amarelo
lá para junho, talvez
no tempo das cerejas
no tempo das cervejas
no tempo quente
no mês em que fui mãe
pela primeira vez
and they lived happily ever after

falta-me fazer uma coisa
ir ao baú das ideias
entrar pela porta da rua pedonal
e comprar aquela peça em espiral
que um dia imaginei sobre uma mesa
depois atirá-la ao chão e parti-la
fotografar cada caco
e inventariar cada sopro
que derrubou a minha casa inventada
não quero esquecer nada
quero lembrar-me de cada ferida
de cada mentira, de cada investida
de cada acto falhado
de cada gesto, de cada beijo
e do desejo
de nada
estou sozinha com o vento
a noite, o frio e o fumo.
nem os cães ladram
nem as nuvens sucumbem
à luz dos candeeiros de rua,
estrelas artificiais
penduradas em postes.
o sol não chegou
para acender as lanternas
fotovoltaicas
que se vão destruindo
ou despindo, não sei,
na sua dança redonda,
planetas apagados
de uma galáxia de poliéster.
comi chocolate e bebi café,
depreendo, por isso,
que estou aqui.
senti o frio como um raio-x,
depreendo, por isso, que estou.
não sei se algum dia serei,
se algum dia os meus gestos
se desprenderão da alma.
por enquanto não sou mais que uma esfera,
uma amálgama de matéria, reflexos e dor,
presa por dois fios prateados
muito finos e fortes,
ao tecto de um quarto
que reclama por luz.
há pássaros que cantam
nesta noite fria
nesta noite sem lua
nesta noite sem estrelas
coberta de nuvens agoirentas
cor-de-laranja
os cães ladram todas as noites
(toda a noite)
as rãs coaxam
mas pássaros não me lembro de ouvir
se não hoje
talvez estejam felizes
ou confusos
ou pedrados
ou talvez cantem para só mim
tenho duas almas que me prendem à vida
dois cordões de luz
presos ao fim do infinito
sou uma marioneta que abraça e que beija
e que finge ter pele e carne
em vez de pasta de papel
não como
alimento-me dos seus sorrisos e das suas birras
alimento-me das suas descobertas
ando à boca do palco
com passos quase perfeitos
da saída esquerda para a saída direita
e vice versa
os meus olhos não mexem
se não mexer o corpo todo
mas estou
ainda estou
aqui
neste lugar sem espaço nem tempo
neste chão e neste céu de amor
tocata
faz amanhã (sexta-feira santa) duas semanas, caiu-me um piano em cima. a culpa foi minha. fiquei perplexa a olhar para a improbabilidade de ver um piano no ar, a ser içado para uma janela que nunca antes vira aberta. o homem que agarrava a corda deve ter ficado perplexo por me ver ali parada e distraiu-se. ou assim. e o piano abraçou-me com as suas patas, fracturando-me vários ossos, fracturas expostas, feias. mordeu-me com os seus dentes brancos de madeira de tília que ficaram espalhados pelo chão à minha volta. cortou-me com a tensão das suas duzentas e trinta cordas de aço. estou em convalescença. envolvida em gesso branco que me dá comichão. as dores são muitas, mas o que mais me doeu foram todos os prelúdios, tocatas e fugas que se abateram sobre mim e que naquele piano não mais soarão.


strawberry passion

é elástica a dor
expande-se e comprime-se
de acordo com o seu acordo
mastigo-a compulsivamente
receio perder-lhe o sabor
mastigo-a com os ossos, com as veias, com os pulmões
perfuma-me
emulciona-me
pre
enche-me