live action
foi assim: numa tarde de fim, encostei a via verde ao vidro e em vez de travar acelerei, em direcção à cabina ao lado. rebentei com a cancela.
foi só assim, só narrativa, sem poesia e sem testemunhas, sem claquete, sem repetição.
atrás de mim ficou uma extensa ficha técnica que não vi, desenrolando-se por um tempo que não determinei, lida por alguém que não conheço e com um parágrafo de agradecimentos por tudo e por nada.
soube bem ser protagonista.
espelho

– Vá, sobe.
A voz parecia diferente. Menos grave, talvez. Era uma voz feita de braços, mãos, dedos, ombro. Subiu.
– Vês?
Não via. O escadote hesitava e a cada balanço as pálpebras aumentavam exponencialmente de peso, tornando-lhe impossível abrir os olhos. Tacteou o resto da subida.
– Vês?
Fugiu das lascas do escadote para a superfície lisa e gelada a que este se apoiava e consolou as palmas das mãos. Ao chegar à aresta, percebeu que também o seu corpo deveria dobrar-se em ângulo recto para que as pernas pudessem juntar-se àquele movimento subitamente horizontal.
– Vês?
Lá em cima, dobrou-se como um metro de madeira. Desdobrou-se. Virou-se. Sentiu a respiração embaciar a superfície. Limpou a humidade com a mão e a mão à pele. Fechou-se como um feto.
– Vês?
Não saberia dizer mais nada? Ou estariam os seus ouvidos a coar o resto das palavras? Os olhos ainda enterrados.
– Vês?
Lembrou-se dos gatos. Não gostava de gatos. Mas lembrou-se dos gatos. Lembrou-se das árvores. Do vento nas árvores. Das árvores jovens vergando com o vento. Lembrou-se de um documentário em que se via uma girafa a nascer. Lembrou-se dos frutos a brotar dos ramos das árvores, intumescentes.
– Vês?
Doíam-lhe os olhos. A luz branca feria-lhe as órbitas. Os braços em curtos semi-círculos tentavam estabilizar-lhe o corpo.
– Sim. Acho que sim.
Sobressaltou-se com a pontada de ar que sentiu nas costas e demorou alguns segundos a tentar perceber aquela lambidela de gigante gelado que lhe percorrera a coluna e depois as pernas em movimentos descontínuos.
– Já vais ver.
Um enorme pincel invisível cobria-lhe cada centímetro de pele com um líquido viscoso e frio. Como se uma nuvem carregada se roçasse querendo fazer-se vestido à força.
O frio apaziguou-lhe as pálpebras. Conseguia finalmente abri-las, mas conservou os olhos semi-cerrados enquanto contemplava o azul celeste do rio, ao fundo.
– Vês?
– Onde?
Tentou ver-se, mas as janelas, as paredes e as portas confundiam-se num padrão complexo de sobreposições oblíquas. Aqui e ali uma réstia de céu. Mais paredes, chaminés, alcatrão, carros, portas, janelas, paredes. Olhou em volta. As mesmas paredes, janelas, portas e chaminés. Mas quietos. Os mesmos carros e ruas. Quietos. Os mesmos buracos na estrada. Olhou de novo para si. O mesmo padrão. Olhou de novo para si. O mesmo padrão. A voz triunfante reflectida em lábios gretados, dentes, língua e saliva.