dor dormente dor presente dor de dentes
dor de corno dor de sono dor de costas
dor de mágoa dor de água dor de amor
dor de peito dor sem jeito dor sem dor
dor de nada dor de fada dor de flor
dor de sentir dor de sorrir dor de não ser
dor de safo dor de sátiro dor de dar
dor de pé dor sentada dor espraiada
dor metástase dor anástrofe dor quiasmo
dor de asno dor de burro dor de murro
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dizer até perder a cor

canícula
são nove e meia mas não parece
está um calor que arrefece
entre voos de andorinha e tacadas
ouve-se um homem a cortar uma sebe
preferia ver vacas no verde
a homens iguais perseguindo buracos
uma colecção de sucessos
troféus com patas, inertes
eu continuo com má circulação
tenho as pernas feias, raiadas
os poros do avesso (é a explicação científica)
e vergonha de andar de saia
antes fosse motosserra
primeiro dia de verão

era um dia de lágrimas. assim se chamavam as tempestades naquele país, aquelas tempestades que parecem sacudir violentamente a terra e dividi-la em gomos como um brinquedo de plástico. ela, aguarela, afundava-se num sofá vermelho que, por acaso, encontrara no caminho, julgando poder assim proteger-se da chuva, os braços abraçando o braço do sofá. ao fim de pouco tempo a pele, o vestido branco e o vermelho do sofá deram lugar a uma só cor.
esteve ali muito tempo. ou pouco tempo. ou tempo nenhum, já que o tempo parecia ter estagnado naquela cor líquida.
pela porta verde do caminho entrou um sujeito impecável, impermeável, protegido por um paralelepípedo de plexiglas. como uma bisnaga, caminhava muito direito, sempre com a tampa enroscada e os rótulos irrepreensíveis. perguntou-lhe, acrílico, o que tinha, espremeu a expressão mais condoída que conseguiu, quis saber se podia ajudar. ela explicou que não, a menos que conseguisse desligar a tempestade que a ensopava e ele retorquiu que até ouvira falar da existência de um botão stop, mas não sabia onde se encontrava, se dentro se fora. a mancha liquefeita não parava de crescer e isso parecia incomodá-lo. fez-lho saber. sabes, eu sei que, mas. é que contigo aí não posso passar, seguir o meu caminho, percebes. não fica bem, eu que ando em linha recta, pôr-me agora com rodeios.
ela pediu-lhe um abraço. esperava, com isso, conseguir soltar-se das fibras vermelhas do sofá, respirar fundo e disfarçar os vincos do vestido. ele assentiu.
desprendeu da cintura um molho de chaves e abriu as duas fechaduras de cada uma das portinholas transparentes por onde fez passar os seus dois braços de polipropileno. abraçou-a como um aranhiço, um abraço sem espessura.
ela contentou-se, levantou-se e dirigiu-se a um espelho embaciado onde desenhou, com o indicador, dois olhos e uma boca. agradeceu e saiu de cena.
e de espectro espantado quando visto
passou a peso de balança
grande, castanho e ferrugento
obsoleto
maior que o prato
maior que o contrapeso
em desequilíbrio constante a um canto
devia ser coxa ou muda ou cega
e é, na verdade, tudo isso
coxa, muda e cega
traz os bolsos cheios de papéis rasgados
outros que não rasgou mas há-de fazê-lo
e traz as mãos sempre dentro dos bolsos
por não saber o que fazer com elas
muito menos com as impressões digitais
que deixam marcas
graffitis invisíveis de festas
que só se revelam nos vidros das janelas
nos copos e nos pedaços de fita cola
que corta com os dentes
e de cada vez que o faz
cai-lhe um dente
e um olho
e um braço
cai-lhe depois o coração
e o outro olho
o outro braço
as pernas há muito que fugiram
resta-lhe a pele de fingir
insuflada
que não é nada
mas há-de ser
uma coisa qualquer
festa

estou cheia de algodão doce
uma tristeza cor-de-rosa
pegajosa
presa a um pau
tenho artérias de açúcar
que me levantam os cantos da boca
e um coração esponjoso
em forma de marshmallow
sou querida
sou ferida
au
na piscina azul
bóiam bolas, baldes, pranchas
e armas de criança.
a água embala-as,
adormece-lhes os tiros de água
enquanto os risos e os gritos
se lançam na sua trajectória ascendente
rumo à terra do nunca.
em breve todos estarão a dormir
enquanto um ou outro carro passa
um ou outro mocho pia
um ou outro velho morre
um ou outro ladrão vê
qual a melhor maneira
de arrombar o portão verde.
prendeu-se um fio numa cerca que saltou com toda a graça e cuidado, mas a corça saltou do telhado e era só aparente a leveza. o vento engolia a distância. viu-se nuvem sem o novelo que, sem ver, se esvaía em vermelho. sem nós, sem a malha repuxada, o chão sabia-lhe a nada, o pêlo a penas de garça, a corrida a devoção e as constelações a novenas que alguém ali pusera em seu nome. quando parou era uma árvore velha e oca, alimentada por correntes de ar, coberta de folhas que escondiam um ninho e com raízes profundas, até ao centro do mundo. sem seiva, mas teimosa de vida, pulsando dias secos de céu azul.