armadura

luto
luta
luto
luta
luto
luta
luto
luta
luto
luta
luto
luta
luto

tenho a boca colada ao coração
sou uma impossibilidade an
atómica
um sopro desfaz-se em partículas
na mecânica dos movimentos
um bater cardíaco desfaz em sopros
cada pa
lavra, cada frase, cada fonema
e neste processo alquímico circular
vou-me
apagando anulando diluindo
refazendo redizendo renascendo
como um fósforo que se extingue
para poder ver o caminho
visita

abres-me janelas nas semanas
que me dispensam em lamelas compridas
não sei como fazes
se trepas pelos ramos que escaparam
à motosserra
como prevenção de outros vendavais
ou se consegues ver o vidro redondo
e embaciado
da clara
bóia
onde vou ensaiando pequenos sorrisos
com o indicador
quando me apanho sozinha
(o vidro que não existe
nesta empena que uso como fachada)
tiras-me da minha tanatose
no parênteses dos teus braços
sou sem ter de saber o quê
estou sem perceber que cheguei
vou sem sobressaltos
bicho da seda


não é mais que um zumbido no meu ouvido a tua
presença ou a presença da tua
ausência
um zumbido, um zoar, um zunir
sem sentido e sem dor
não é mais que a inevitável promessa de uma
morte lenta
apesar de saber que dos casulos
que laboriosamente teces poderia talvez
poderia talvez um dia
poderia talvez um dia se eu quisesse
extrair algo de belo se me apetecesse, mas
repugna-me a tua pele repugna-me o teu
movimento
eu
que subo às árvores para colher folhas
verdes
com as quais filtro a minha
luz
as mesmas folhas
verdes
que tu mastigas e digeres

não te quero a viver debaixo da minha cama
podes morrer com ou sem asas que já não me importo

deitar

ouvem-se os pios dos mochos

como alinhavos na noite que gela
e de dia, para pasmo de todos,
vêm do nada papagaios verdes
posar para nós sobre os ramos nus
as árvores, carregadas de ouriços,
parecem de prata sempre que chove
aqui geralmente
os homens andam de boca aberta
alguns mesmo de língua pendurada
e as mulheres, imóveis,
trazem a boca blindada
ambos ocupam e desocupam cadeiras,
camas, corredores e degraus

palmeiras órfãs de trópicos
espreguiçadeiras órfãs de piscina

e eu, órfã de alice,
aqui estou sentada no muro
o meu muro articulado
com resguardo

e ao lado
a ceia de chá e bolachas maria
rodilha


voltei à terra plana, ao marco zero
capinei, desbastei, aplanei, nivelei
alisei cada centímetro de solo
com as minhas próprias mãos
e carreguei cada pedra para o topo
para que ficassem mais longe da vista
como cerejas num bolo, como um jardim zen
estou cansada mas contente: tenho a casa arrumada
seria mais fácil caminhar agora
não fora
ter sobre mim tudo o que sobrou
num enorme funil que trago preso à cabeça

dei entrada

receberam-me com sorrisos e em bom português
tive direito a bolo porque alguém fez anos
revistaram-me a mala com sorrisos
levaram-me a carteira com sorrisos
e o corta-unhas
servem-me saúde em copinhos
a tensão está óptima
já a atenção tende a divergir
para um buraco negro
onde pareço caber inteira
a nesga da porta da casa de banho
um buraco vertical
uma tira de mim
watermelon sunrise

era um sol que se esvaía em água.
caminhávamos sobre as poças 
divertidos com aquele jogo da glória,
inebriados com a doçura do cheiro a fruta fora de época.
era o dia que de novo nascia
e outro dia e outro dia,
como se a luz se sucedesse só para nós, 
os privilegiados, os futuros, os passados, os presentes,
os mais-que-perfeitos.
eu fiquei presa numa poça
percebi que o líquido era viscoso, o cheiro artificial,
que o teu sorriso era feio
quando visto de trás,

que o teu sorriso não trazia uma mão agarrada,
nem um pau,
nem uma pedra,
nada.
e que a tua marcha só tinha uma direcção.
a tua direcção.
fiquei presa na poça.
masquei cada pedaço de terra cor-de-rosa

até que perdesse o sabor e a aderência
com o antídoto da minha saliva, com a perícia da minha língua.
e fiquei com sede.
com muita muita sede.
a morrer de sede.
só sede.