mal consigo abrir os olhos para escrever
não dormi não tive espaço
a cabeça cheia de discos de view
magic
a cores
braços redondos em volta de braços
duas bocas à volta de um desejo
que se formulou com imperceptíveis nadas

a tua voz enrolada na minha
sobre a mesa
o rio
enorme leito de azul
a mostrar-nos como só se vive avançando
até se nascer de novo dentro de um mar
muitas vezes

dedos nos lábios
(enquanto não se disser não pode ser mentira)
mãos nos bolsos
(enquanto não se tocar não pode esfumar-se)
olhos nas mãos nos dedos nos outros olhos

escrevo-te deste torpor deste quase sono
sem saber bem se adormeço ou se acordo
vi
ver

voltar aos vasos partidos
às treliças retorcidas
ao fruto do venda
val
que passou e que eu não vi


comer o fruto sem casca
colar os vasos com cuspo
desenrolar as treliças
e passar dias a ferro
para os vestir ainda quentes

(9-2-13)
vantagens de se ser transparente

podemos andar nus que ninguém repara
não se perde tempo de manhã

não precisamos de espelhos
nunca nos vemos velhos

trazemos o coração à vista
e quem quiser notar nota
(se o nosso coração pára)
quem não quiser não nota

não ficamos mal nas fotografias
nem saímos mal na fotografia
podemos sair à francesa
podemos comer como abades
ser feios como as portas
ter as pernas tortas

e podemos ser mosca

menor propensão para a obesidade mórbida
menor propensão para perder chaves
maior tolerância ao sol
maior tolerância ao álcool
e nada de ressacas

podemos pregar sustos e atravessar paredes
não temos de esconder os piretes

não guardamos não acumulamos não ocupamos
não sobramos nem soçobramos

sopramos a soprana existência sobre velas desenfunadas
em chama
mukashi mukashi

passos que furam o chão
fee-fi-fo-fum
os teus sapatos gastam-se
sempre do mesmo lado
queres atar-me a linha do ponto a ao ponto b
ao pescoço
mas eu (ainda) sei saltar ao elástico
até terceiros
e chega bem


mãos que rasgam envelopes
o meu nome rasgado ao meio
o meu nome sem casa
e a casa em triângulo
que faz desaparecer coisas
pelos teus bolsos sem fundo
areops!

o efeito da erosão
na tua escova de dentes
das palavras que ranges
enquanto eu bato nos ouvidos
para que a percussão abafe essa tua fúria
essa necessidade de atrito

atiras-me o teu rasto de nada
para que tropece
mas eu (ainda) sei saltar à corda:

ursa entra no jogo
ursa arredonda a saia
ursa dá meia volta
e ursa sai do jogo
na próxima à esquerda

a calçada portuguesa não se compadece das nossas bolhas de vidro
tem buracos que travam as trajectórias red
ondas
berços de viagens por fazer
as arestas das pedras mal ni
veladas reduzem o desejo a vidro moído
desviamo-nos dos círculos dentro deste almofariz
para nos perdermos em elipses forçadas
e evitar algumas ruas

«ai a merda»

aqui vai o poema
querido amigo
que retirei da cartola daquele impulso
mais vale tarde porque nunca é tarde
o tempo em que estamos não é mais que o nosso tempo
aquele com que forramos cada encontro
e vamos escorando os deslizamentos de horas
passei dias a tocar-lhe ao de leve
eu
braço articulado de uma máquina de peluches
à procura de um corpo sem lugar cá em casa

hoje sentou-se à minha frente uma mulher mais velha que eu
a cara não condizia com as pernas nuas
e o peep toe mostrava umas unhas demasiado compridas
sentou-se na fila em frente da sala de espera
e eu esbarrava nela sempre que me erguia do livro
cheirava a decadência tinha um ar salgado e seco
e alguma doçura cristalizada no modo como se movia
ou se calhar era ao contrário
a mulher não sabe que vive agora num poema
eu nunca saberei quem é aquela mulher de pernas nuas
a quem desejei arrancar a pele do rosto
para perceber se seria jovem por dentro

quanto ao meu repertório de setas
guardo-o entre aspas no bolso de dentro junto ao peito
minúsculos braços articulados
que me salvam de viver empalada

[poema a pedido, 24 de agosto de 2015]
imago

acendi uma vela de silên
cio para poder escrever-te estas linhas
como não tenho papel es
culpo-as a estilete na memória
hei-de soprar-tas para a tua boca
se as vires por dentro talvez percebas que vivem
não são letra morta nem recibo de portagem
são uma cancela automática com garantia de cinco anos
que se abre e fecha com comando à distância


revol
vi uma vala de silêncio para poder estar aqui intacta
de rede em
riste para caçar borboletas
não é com revól
ver que se apanham
os efémeros instantes de pó que prendo com alfinetes ao peito

guardo os que se partem num atlas pesado
e procuro o lugar do livro na estante tacteando
com a ponta dos dedos e as pétalas dos olhos fechadas
as pétalas páginas do meu corpo dividido

deixas-me
em suspenso numa crisá
lida de fogo
ceci n'est pas une porte

o rímel em quarto minguante debaixo dos olhos
sorrisos negros à esquerda e à direita
mascara sem acento a escorrer pela cara
benchmark

por cada frase construída em degrau
com as minhas mãos nuas indiferentes a falhas
ergue-se outra
frase poço parede
buraco negro que engole o sol e o vomita em cuvetes
que se conservam no frio

por cada frase construída em andaime
com as minhas mão hábeis com chaves
ergue-se outra
frase ponte plataforma
estrela morta que rebenta do avesso
e se abate sobre o meu frio como um lençol

tenho o molde das coisas guardado nas minhas mão nuas
em calos colinas silêncio e golpes de asa



julieta

dois gramas de beladona bastam
uma lasca de morfina sem retorno
morfeu em vez de romeu
hipnos somno em sono de ave
cama ardente de penas
que reclama o corpo de tânato
um corpo que tome aquele corpo
e o inflame


cada flor guarda o segredo das mortes não consumadas
e cada bolbo enterrado que não germina guarda o meu segredo

embala-me o cheiro doce e enjoativo
que se entranha nas fibras do tempo

as flores que não cheguei a pôr na jarra

dirão que as descurei que não as aproveitei
na verdade foi assim que me pareceu certo deixá-las
um molho de flores mortas sobre o armário da entrada

para lá da porta a estrada

astro
lábio

há vários dias que tento identificar o local preciso onde os contornos se tocam
(tenho o tempo da cozedura da massa para escre
ver)
a grande falha oceânica que desenha a fronteira
(enquanto a água não ferve e a sêmola não amolece)
mas foge-me a latitude e a longitude por entre os esconderijos do peito
(desfio as frases duras e lânguidas que deram guarida a outro fervor)
afundam-se num misterioso mar que engole planetas e estrelas
(desfaço-as para perceber o que gu

ardam dentro)

sinto-me fonte hidrotermal ecossistema de dias claros
que penetram o chão do mundo e ressurgem
trazendo consigo o clamor do fogo daquela profunda garganta aberta
golpe de asa golpe de fisga golpe de sol
a pele enrugada pela água confortada pela luz
e de novo imersa no silêncio morno da espera

mas não sei onde fica o lugar onde os contornos se tocam
(a água evaporou e a massa queima)
funambolismos
há quem nos corte a corda antes do salto e há quem nos receba em rede inesperada. há quem nos corte a corda antes do salto e nos receba com uma rede esburacada. há quem nos ate a corda e há quem nos poupe o salto. e há quem salte connosco de qualquer alto.
benchmark
por cada frase construída em degrau
com as minhas mãos nuas indiferentes a falhas
ergue-se outra
frase poço parede
buraco negro que engole o sol e o vomita em cuvetes
que se conservam no frio
sísifo

não as senti nas minhas costas
as tuas mãos
apenas o vento
que me trespassava com ganchos na ponta
cordas de nunca
que me lançavas aí debaixo do extremo
do teu promontório de certezas
que conquistaste à força avançando vulcânico
pelo meu mar adentro

subi
lastro de um corpo faminto
estilhaços de boas intenções
tesouros que pareciam luzir
se a inclinação do olhar fosse certa
dentro das noites de chumbo
que atravessei como um espectro

daqui tudo é definido e claro
tudo faz sentido

devíamos viver do fim para o princípio
desenterrar o composto
retirá-lo da sua cova
e devolver a fruta podre às árvores
para a encontrar perfeita no dia seguinte

devíamos ser feitos de fruta
como a menina maçã
a quem joão sem medo
não resistiu morder a face
por ter fome

devíamos cuspir sementes
raízes em potência
que assim teriam espaço
e escusavam de enrodilhar
nos nossos dedos pescoço cabeça língua
as alternativas declinadas de uma vida inteira
cabos eléctricos que sobram ao longo dos anos
e que tentamos fechar numa gaveta perdida
bainhas desfeitas e o seu rasto de linha
imperceptível trajecto do impossível

tenho preso ao braço esquerdo
o elástico da distância
o garrote que me estanca a hemorr
agia
e inverte a direcção do meu sangue
click
já faço parte da clique?
aprimorei o shabby chic
consegui ficar na pic
tenho o sonho de ser freak
ninguém repara no meu tique
corrente
meço distâncias com o meu corpo de íman
quente quente frio
bússola desregrada que confundo com o relógio
de corda
em prata
para pendurar ao pescoço
o único que usaria se tivesse arranjo
risco a tracejado com o tira-linhas
tinta-da-china sobre papel cavalinho
que aprendi a não manchar
e recorto todas as frases descontínuas
que me agarram a esta esfera sem pólos
com resistentes em
baraços
con
tornos
de sombras nuvens fantasmas visões
e pessoas de carne e osso
que cospem quando falam
perdigotos de fogo
hesito iludo-me engano-me
com os janus que encontro
pessoas perfeitas sem costas
estátuas impossíveis de circundar
têm uma carne muito branca
têm a pele imaculada
atraem e repelem com a mesma força
magnetos de anis
laços fechados
caminhos de giz
na estrada molhada
adivinha

vê-se a lua daqui e eu sou lua também
redonda e distante no ponto
diametralmente oposto
o meu corpo telescópio de paredes escoradas
ergue-se como um céu finito de pedra
que aprisiona o reflexo das estrelas
quando as há


fundo
muito fundo
um mundo líquido transparente
habitado por ecos
sobre rios incandescentes

o que sou?

sou um poço
magia de vedor
trava-línguas destravada
locomotiva de fogo
sobre sulipas rasgadas
carris em faísca
de montanha-russa
saliva e sémen de vulcão
sou sede e água gelada
sou lava petrificada
vinte e quatro fotogramas
de cada segundo de vida
sou dedos sou braço sou mão
montanha coral asas chão
sou açúcar sou sal bem e mal
sou o que ouço o que vejo
o que dou e o que me dão
sou núcleo manto e crosta
estrela morta supernova
sou as ruas que me acolhem
sou as ruas que desejo
sou o além sou o aqui
sou os quinhentos anos luz
que me separam de ti
enigma

duas frases impossíveis
entrelaçam-se sedentas
como hera
de encontro a uma parede


a cal recebe-lhes os braços
que se contorcem
confundem e alastram
rebentando em folhas e frutos
procurando-se em profundas raízes
o tempo escava valas de rega
trincheiras invisíveis
múltiplos escudos de minerva
de muitas faces

ao longe
crispações microscópicas
minúsculos incêndios de silêncio
ínfimos cortes com a ponta da tesoura
arqueiros certeiros que apontam aos poros
e uma alma num corpo assombrado
tropeça nas pedras do peito
escolhos onde esfola os joelhos

um minuto de esperança
quinze palavras perdidas
e um dia
por pura teimosia da voz e da vida
nasce na hera em sobressaltos
uma flor
que se abre a medo em fonema
demasiado breve
demasiado curto
pequeno demais
para cobrir as feridas
kintsugi

sair de dentro das paredes
da caixa de ar entre as fiadas de tijolo furado
depois de dormir metida nos roços
da luz e da água
e de escavar sonhos de lã de vidro
janelas para árvores de folha persistente
grãos de vida
e montes de morte
em contínua derrocada arenosa
que aprendi a aparelhar

faço-o como fazem os brinquedos
de todos os quartos de infância
como uma ninja
como uma aparição
ninguém nota ninguém sabe
que vivo no avesso das coisas
é lá que sou

quando me vêem voltei a mim
com veios de ouro
a prender-me a vontade e o desejo
às fases da lua e à rotação da terra
às marés e aos incêndios
aos ventos que não me levam tudo
e àquele sítio entre os lírios onde brincava
a minha casa de folhas verdes
rigoroso decalque
da história que a mim me contava
mãe,

ando a catar os pontos das minhas vírgulas
um a um com um cotonete embebido em lixívia

são micro-alvos para todas as acutilâncias
caixas guardadas por mil pandoras
macro-poços de todas as existências
berlindes pesados nos bolsos de duas crianças
parasitas que me travam as horas

a ti que penduraste uma vírgula no meu ponto
dedico as folhas intumescentes
que brotam neste estranho calendário
árvore de raízes expostas
duas vezes nascida do mesmo ventre
vivo no fio do papel
acordo com cortes sem espessura
que não sangram
não ardem não latejam
mas demoram mais tempo a fechar
e doem em linha recta

é por aí que se infiltram as palavras
sobretudo as palavras dos outros
palavras metálicas que picam
e ficam
que chocalham quando entrechocam
e me obrigam a contrariar o movimento natural
para que não me saiam por outras bocas
famintas sedentas
bocas que trago na ponta dos dedos
ávidas sôfregas de gritos
brados berros bramidos
e constelações de cicios

por isso nunca gostei de correr
diziam-me que não sabia
quando o que eu não sabia (nem sei)
era emudecer
há um momento em que te desvias dos postes
e dos troncos das árvores
por instinto
os olhos enfaixados com a gaze puída do passado
para que não te esqueças de quando sabias ser
por cima da gaze os óculos graduados
sujos de pólen e de lágrimas secas
como se te chovesse dentro de casa
e cada dia um tipo em chumbo, corpo 24, caixa alta
tomas-lhe o peso com uma mão
(não percebes por que ordem te aparecem)
e junta-lo aos outros no saco de pano
que a custo manténs acima do chão

antes de teres passado fechavas os olhos
e fazias questão de não acender a luz
quando te levantavas da cama
conhecias cada palmo de parede
entre cada aduela do corre
dor
das tuas casas
as tuas casas eram só uma
uma casa bonita com falhas nas aduelas
que lias com a ponta dos dedos
e traduzias com o teu sangue
sobre as paredes brancas
numa caligrafia indizível

querias saber em que que se tornara o mundo
para o teu pai
a partir do dia em que deixou de ver
então fingias-te cega
como se cega conseguisses vestir a pele do teu pai
andar sobre os seus pés como fazias em pequena
descobrir o sentido com os dedos
onde eles chegassem

antes de teres passado eras muito mais cega que o teu pai
e quando viste pela primeira vez
doeram-te os olhos, doeu-te tudo
do
eu

doeram-te as casas
e as suas geografias
as frases que escreveste só com a maiúscula de cada palavra
as frases que sobrepuseste para que só tu as conseguisses ler
(outras geografias)
as frases que escreveste em espelho
para que fossem o embaciar da tua respiração
e o seu contrário
e as que nunca escreveste por medo e vergonha
(a tua geografia)

a paisagem agora tem forma
e tu tens os tempos todos contigo
os tipos de chumbo foram ficando
em bancos de jardim
em casas de amigos
em mãos que apertaram as tuas mãos
são o manual de instruções
do mecanismo complexo que te anima

e aceitas esta nova cegueira
que é só tua
única e nua
até que o mundo te queira

que vontade de me deixar ir

o escorrega é enorme e tem um alto a meio
sei que vai fazer aquela impressão na barriga
sei que vai ser bom
que me vou esquecer de tudo
na vertigem da descida

sei que vou fechar os olhos
que vou sentir as folhas do ramo mais baixo
tocar-me no cabelo em desalinho
mas já não haverá nada a fazer

as cores já não terão cor
as formas não terão forma
os dias não terão horas
o peso não terá tamanho
e cada pecado
perderá o seu preço

restará a memória
a minha feita em massa de bolo
a dos outros o açúcar
com que enganei os tolos


ama relo
quando eu era pequena tinha um polvo amarelo de lã em cima da cama. os tentáculos eram longas tranças e dentro da cabeça do polvo era onde eu guardava o pijama. quando eu era pequena fazia a cama todos os dias e punha o polvo em cima da colcha, não a meio, um pouco mais para cima, com as oito tranças muito bem esticadas e à mesma distância. quando eu era pequena usava totós e tranças.
não faço a cama todos os dias, embora ainda seja pequena, e os meus oito braços não esticam. uns esforçam-se por tocar, outros para não deixar cair. são elásticos sem o ser. por vezes enleiam-se. muitas vezes. outras vezes entrançam-se. e, como acontece quando encostamos as costas das mãos uma à outra e cruzamos os dedos, também os meus braços parecem ganhar vida própria, desobedecer à vontade, mexer quando não devem, parar quando não podem, recomeçar sem aviso, chegar perto demais, recuar sem eu ver.
Urgência Tenho um poema a nascer-me no peito Mas não o quero escrever Porque é sobre ti E um poema sobre ti não é um poema É um feijão que uma criança enfiou no nariz e que não germinou, apodreceu Saiu primeiro pela pele em forma de febre Até ser extraído, em ambiente asséptico Com uma pinça London College Um corpo estranho Um acidente Um tilintar na bacia em forma de rim Não preciso de antibiótico Aprendi a cuidar de mim
bolbo

larga as cascas, disseram
guarda as cascas, disseram

e as cascas secaram
partiram-se em esquinas
perderam-se em portas
arrastaram no chão
fizeram-se em pó
por baixo outra casca e outra e outra
casacos de lã em noites de verão

larga as cascas, disseram
guarda as cascas, disseram

e as cascas quase secaram
deram abrigo
limparam lágrimas
travaram chuva
foram lenço, lençol, ligadura
biombo, cobertura
janela, alçapão

larga as cascas, disseram
guarda as cascas, disseram

e as cascas frescas sangraram
sangue ácido, incolor
sangue sem tempo de vida
sangue sem tempo de o ser
sangue que pôs olhos em ferida

larga as cascas, disseram
guarda as cascas, disseram

e ela já quase sem corpo
pediu que parassem
e meteu-se na terra
para ficar perfeita uma parede azul exige muitas demãos de tinta, mais ainda se for rugosa. cobrir de forma homogénea uma parede rugosa e porosa, uma parede que chupa a tinta, exige força e acuidade visual, persistência, bolhas abaixo dos dedos, onde chega o polegar, escaldão nos ombros, se for verão. uma parede rugosa é um mapa topográfico, uma maqueta de mundo que pode ferir, se nos escapar a mão. exige distância. não falta, de longe, quem veja manchas, diferenças no tom, imperfeições. e proximidade. para cobrir cada vertente, cada abismo, cada cume, cada vale, depressão ou cavidade.

para ficar perfeita uma parede azul exige que cocemos o nariz com as mãos sujas de tinta, que rocemos uma coxa na tinta fresca quando nos levantamos para descansar os joelhos. que nos espreguicemos, longe, com os braços em conta-gotas, antes de nos encavalitarmos no muro para chegar os sítios mais altos. pingos de azul na cara, soprar os cabelos do rosto, à falta de vento, moldar os pés nus às telhas quentes do sol, barro com barro. para ficar perfeita uma parede azul exige minúcia de joalheiro, mas também gestos largos e grosseiros. água, de tempos a tempos, e uma cadeira de plástico por onde trepar e onde possamos regressar.


















imersão

tu sabes que nunca hesitei em mergulhar sem suporte de vida, levar ao limite o fio de luz que ia libertando com um rigor de ourives, para emergir com as mãos cheias de esponjas e de corais vermelhos. descer a noventa pés e regressar. cinco minutos de apneia. sem outro peso que não o meu próprio peso e o peso de todas as respirações que por mim ficavam suspensas. sabes que o mar me amava, que me despia do corpo, que me recebia inteiro com a sua pele salgada e me conduzia, com o seu movimento, àquele outro mar que trago dentro de mim. que ainda trago. dentro.


eu sei que era o meu perfil que desenhavas na areia molhada, enquanto esperavas que eu regressasse, ainda um pouco inebriada com o iminente exaurir da luz. era por isso que ficava tanto tempo com a tua mão nas minhas. queria perceber como é que cada um dos meus riscos se fixara na ponta dos teus dedos, como é que o teu braço decorou o meu contorno, que movimento era esse que me arrancava de dentro de ti.

gosto de lavar a loiça com música. não importa o que se faça, tudo é melhor com música. gosto de lavar os pratos e os copos por onde havemos de comer e beber tantas vezes. sentir com o tacto se está tudo limpo, porque a luz é pouca. gosto de pouca luz em casa. de ter todos os sentidos concertados para me devolverem o mundo, me aplacarem o mar, me redesenharem a sombra. ao lado, na sala, vais esboçando o presente de um traço. desenhas olhos e asas, corais vermelhos abandonados na praia. acabaremos a noite numa só silhueta, fundidos com a casa, despidos de paredes, inteiros.
Fotografia: Estelle Valente
nevralgia i

dói-me o nada
qualquer temperatura
lhe aumenta o volume
o nada de botero
pesado como bronze
monumento a tudo
o que trago no peito
movimento que








nevralgia ii

dói-me o tudo
a linha côncava
onde caem os sedimentos
o tudo de turner
leve como bruma
o tudo que cobre e des
venda

o que trago no peito
o que bebo de um trago
afasia
carro é copo
livro é mesa
chão janela
estrada cinto
pé caneta
quadro vaso
caixa móvel
pedra cão
água cama
e rir é espera
beijo é golpe
maçã é sorte
festa é luto
falar silêncio
calar um murro
gritar um passo
parar caminho
descer cansaço
correr começo
vida é espanto
flor é morte
e cada dia
cada querer
a mesma dor de nascer
oh eu vi tudo, sabes que sim
fui enchendo os nossos corpos transparentes de 50 microns
abertos em cima
com o que apanhava
para que não voássemos
porque se voássemos
quem sabe onde estaríamos
debaixo de uma pedra
no fundo do mar
presos numa árvore
e depois?

então tudo o que pesava servia
o que me dizias sem olhar para mim
o que me repetias com a voz perfeita, as falas do teu guião
e sobretudo o subtexto
aquela vez em que te vi reparar na minha pele do avesso
aquela vez em que te vi reparar na minha pele do avesso

agora que podíamos ser dois seres inteiros
sem nada em que pudéssemos tropeçar
com o caminho livre de fundos falsos
cada um em seu carril paralelo
higienicamente juntos, sem passado

agora que podíamos ser dois seres inteiros
ficámos para sempre presos aos equívocos
gavetas vazias empurradas à força para dentro do peito
palavras escritas no corpo com a ponta da faca
e aquele cheiro tão característico dos comboios parados
aquele perfume de viagens liquefeitas em metal incandescente
que se adivinha nas faúlhas da travagem

e tudo o que resta é
aquela vez em que te vi reparar na minha pele do avesso