«ai a merda»

aqui vai o poema
querido amigo
que retirei da cartola daquele impulso
mais vale tarde porque nunca é tarde
o tempo em que estamos não é mais que o nosso tempo
aquele com que forramos cada encontro
e vamos escorando os deslizamentos de horas
passei dias a tocar-lhe ao de leve
eu
braço articulado de uma máquina de peluches
à procura de um corpo sem lugar cá em casa

hoje sentou-se à minha frente uma mulher mais velha que eu
a cara não condizia com as pernas nuas
e o peep toe mostrava umas unhas demasiado compridas
sentou-se na fila em frente da sala de espera
e eu esbarrava nela sempre que me erguia do livro
cheirava a decadência tinha um ar salgado e seco
e alguma doçura cristalizada no modo como se movia
ou se calhar era ao contrário
a mulher não sabe que vive agora num poema
eu nunca saberei quem é aquela mulher de pernas nuas
a quem desejei arrancar a pele do rosto
para perceber se seria jovem por dentro

quanto ao meu repertório de setas
guardo-o entre aspas no bolso de dentro junto ao peito
minúsculos braços articulados
que me salvam de viver empalada

[poema a pedido, 24 de agosto de 2015]
imago

acendi uma vela de silên
cio para poder escrever-te estas linhas
como não tenho papel es
culpo-as a estilete na memória
hei-de soprar-tas para a tua boca
se as vires por dentro talvez percebas que vivem
não são letra morta nem recibo de portagem
são uma cancela automática com garantia de cinco anos
que se abre e fecha com comando à distância


revol
vi uma vala de silêncio para poder estar aqui intacta
de rede em
riste para caçar borboletas
não é com revól
ver que se apanham
os efémeros instantes de pó que prendo com alfinetes ao peito

guardo os que se partem num atlas pesado
e procuro o lugar do livro na estante tacteando
com a ponta dos dedos e as pétalas dos olhos fechadas
as pétalas páginas do meu corpo dividido

deixas-me
em suspenso numa crisá
lida de fogo
ceci n'est pas une porte

o rímel em quarto minguante debaixo dos olhos
sorrisos negros à esquerda e à direita
mascara sem acento a escorrer pela cara
benchmark

por cada frase construída em degrau
com as minhas mãos nuas indiferentes a falhas
ergue-se outra
frase poço parede
buraco negro que engole o sol e o vomita em cuvetes
que se conservam no frio

por cada frase construída em andaime
com as minhas mão hábeis com chaves
ergue-se outra
frase ponte plataforma
estrela morta que rebenta do avesso
e se abate sobre o meu frio como um lençol

tenho o molde das coisas guardado nas minhas mão nuas
em calos colinas silêncio e golpes de asa