travessia
prendeu a ponta do arame no para peito, a outra ponta presa ao ramo mais corajoso. lá em baixo todos aplaudiriam, embora ainda não soubessem o que se preparava para acontecer sobre as suas cabeças, nem soubessem tão pouco que o corpo é capaz de tais prodígios, como olhar para cima. fez uns breves exercícios de aquecimento, ensaiou os passos e o retomar do equilíbrio com uma rápida flexão dos joelhos. hesitou em relação à lista de nove páginas que teria de levar consigo: quatro numa mão e cinco noutra? ou ao contrário? decidiu levar as nove páginas na mão esquerda, da qual mais facilmente se esquecia. a outra ficaria livre para comandar mecanicamente o gesto. respirou fundo, acariciando com essa respiração a camada espessa de contentamento que lhe forrava o desígnio.
dali a nada estava a meio do arame, os pés em breve acento circunflexo. se tremia não se via. não se via. muito ao longe um dirigível vermelho cortava o lençol de vento que decidira, à falta de melhor dispositivo de segurança, suspender a trajectória para acolher aquele intrépido trapezista sem rede. coisa nunca vista. os cinco últimos passos foram breves como colcheias, o restolhar das folhas confundindo-se com o restolhar da lista, o rombo dos aplausos anunciando-se na batida cardíaca. chegado ao ramo desprendeu o arame que de novo se colou à fachada do prédio. ali ficou muitos anos, misturado com os cabos eléctricos e os fios telefónicos, guardiões de outros impulsos.
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