encontro
entreabro os lábios para falar, mas as palavras encavalitam-se, escondem-se em reticências e reaparecem em frases desconexas. a gramática reage mal quando outras linguagens interferem no discurso. um carro que passa e o olhar que se desvia, o peso dos dias verdadeiros, o grande buraco negro das expectativas, para onde convergem telhados, paredes e árvores arrancadas pela raiz. pura estática. ruído cósmico.
aninho-me no teu abraço, a cara encostada ao teu peito, e leio-te assim em silêncio cada uma das páginas deste meu devir.
no dia seguinte. no dia seguinte ainda lá estamos, como uma estátua num jardim que arrasta histórias que ninguém conhece. eu aninhada no teu abraço e tu pacientemente preso às palavras que nunca direi, traduzindo cada uma em movimentos quase imperceptíveis do corpo e no som da respiração.
na verdade. na verdade nunca de lá saímos. estivemos sempre nesse lugar sem espaço nem tempo. eu cosendo o silêncio com os sorrisos que trocamos, tu tradutor do indizível, a colar legendas do mundo a cada nova interrogação. ensinaste-me a decifrar, lembraste-me como se fazia. é muito simples, tens toda a razão. passarei a trazer sempre pedrinhas pequenas no bolso para atirar à tua janela. e, já agora, para marcar o caminho, caso me perca no labirinto de sebes altas que me levou até ti.



se os dias pudessem desdobrar-se em bolsos
pegava na minha máscara sorridente
de contraplacado marítimo
resistente à água salgada e às intempéries
serrava-a em cem peças de tangram
e deixava-a guardada para sempre
e às suas infinitas figuras em potência
depois escorregava por ti abaixo
líquida, longa e luminosa
para que me bebesses às escuras