repetir
dobar meadas contigo. gosto daqueles momentos em que nos olhamos olhos nos nós e o movimento dos braços disfarça o nervosismo. tu enrolas o novelo, altiva. eu não descolo as mãos dos fios, mesmo que os dedos por vezes brinquem com a ponta que foge. não vês que não sei da ponta. não vês que só finjo que sei como se faz. não sei o que ser quando já não houver mais linhas nas minhas mãos que as linhas das minhas mãos, sem outro horizonte que me corrija a perspectiva. o novelo já está maior que tu. eu sou do tamanho da meada. do tamanho das minhas mãos. iguais às tuas.

(continua)
tivemos uma ideia brilhante os dois. saltou-nos da cabeça como uma rolha. e depois de a dizermos até não haver mais palavras para beber da boca de cada um, caímos, para cima, vazios e tontos com a vertigem.

não tenho aquela função que endireita as coisas, sou forçada a virar o pescoço. faço o pino para ver melhor o mundo, mas lá de baixo percebo que os outros andam de mãos no ar. iguais a mim. trapezistas no arame. um pé à frente do outro. fazer o pino cansa os braços, mas também os torna mais fortes.
transparente
como uma casca de cebola. como uma das. como as. como as cascas.
mergulhei num mar em camadas e saí com os olhos salgados,
mas com lentes de aumentar.

viagem ao fundo
olha, é assim. inclinas só um pouco, na direcção da luz. demora um bocadinho, mas os olhos habituam-se. abre os olhos. temos asas nas pálpebras, parece. agarra-te bem. sentes?

recebi um embrulho suspeito. papel manteiga e uma guita a segurar as pontas. recebi-o num movimento velado por olhares cúmplices. guardei-o na mala e trouxe-o para casa, protegido por cadernos, canetas, catálogos, óculos, moedas, multas e chaves. lá dentro está um livro. sempre que termino de ler mais uma página, volto a refazer o embrulho. nunca se sabe.