um casaco de inverno, uma segunda pele, grosso como a casca de um carvalho velho, permeável como o leito de um rio sempre novo. aprendi a enrolá-lo como um xaile, um turbante para a alma que me aquece e areja o lugar onde se cozinham as dores e se afinam os mecanismos do riso. tecnologia de ponta esta teia e esta trama quente e fria ao mesmo tempo, sem regulador de intensidade. sempre presente.

neste natal...
esticar o pescoço e olhar para as estrelas, mesmo que não se mostrem
ontem, enquanto dormia,
perdia a vida

eu não acordei àquela hora

hoje a ausência é a mesma
mas muito mais escavada no peito

.

preferia não te ver nunca mais
a ter de ver-te pela última vez

o monstro sorridente da segunda circular
esgueirou-se pelas falhas da fita cola. encheu as órbitas de autocolantes, dois planetas sem espessura. fez sua a pele que lhe amarfanhava os gestos. pôs o seu melhor sorriso e desafiou os seres parados. amanhã, quem sabe, viajará num forro rasgado, num estofo coçado, num sonho estafado. procura-se músculo invisível, monstro que se entranha entre o osso e a pele.

obs.
o caminho faz uma curva em cotovelo muito comprida. é mais fácil atalhar pelo meio da terra e subir depositando alternadamente o peso nos degraus improvisados pelas raízes expostas. os jardineiros que se amanhem. as minhas calças são azuis, não verdes. pensava que ninguém o via e no entanto. ao chegar lá acima sacudiu os pés e seguiu pelo chão empedrado.

um salgueiro
para c.


post-it



trovoada

soltou-se da boca presa ao pé
o dente de leão
subiu pela teia soprado pelo tempo
sem vento
seria

e, na urgência da linha, esticou-se, em pontas, espreguiçou-se. depois baixou-se e descalçou-se. percorreu-a em sentido inverso, saboreando cada corpo de cada letra com a planta dos pés. seixos que tocavam todos os pontos do seu próprio corpo. os sons lambendo-lhe o cansaço como um rio em sentido contrário. um dia aprenderia a ler com a pele.

a deus

viva
no verso da sombra
no terço do dia
descubro
outras metades

apneia

olha
o reflexo no lado de dentro das minhas pálpebras
os dias liquefeitos e povoados por polvos
estradas sem curvas
corpos sem estradas
mãos amputadas de tinta
ideias amputadas de mãos
e, do lado de fora,
o ar que preenche o resto dos dias
corpos inteiros
de pulmões cheios




imagem: fotograma do filme "wide awake" de alan berliner

com um golpe de asa
cortaste-me, temperaste-me,
sorveste-me, serviste-me
uvas lavadas na água da chuva
e disseste-me
que as asas molhadas
também engolem a distância

here comes the sun
um beijo no umbigo do dia
campainha
vou escrever muitas vezes a mesma frase à mão
fechar fonemas à chave num papel
e arquivá-lo entre duas teclas
volto já

obs.
há um homem que se cruza no meu caminho todos os dias em sítios improváveis. tem um andar rápido, decidido, e um olhar de quem já chegou antes das pernas e descansa à espera que o corpo se junte a ele. geralmente vejo-o na estrada das vinte e oito oliveiras. uma recta comprida, sem passeio, com vinte e oito árvores velhas e raquíticas, sem o brilho lustroso das centenárias que plantam nas rotundas. estas, pelo contrário, parecem crescer sobre o muro de pedra, sem terra que lhes alimente as raízes. será certamente uma ilusão de óptica provocada pela diferença de cota do terreno por detrás do muro. o homem tem um ombro ligeiramente descaído.


são muitos os canais da esperança
uns secos e quebradiços, estreitos
outros largos e cheios de ar, túneis de vento

atrevo-me a ser seiva e abrir pelas veredas tortas
madeira morta, branca, que o mar cuspiu para terra
arritmias

tenho um coração externo que pulsa se o outro pára
a minha vida é como uma corrida de estafetas
arranco ritmos a pedras, paus, sombras e sopros
arritmias controladas

faz hoje anos que o mundo é mundo

pelo menos para mim


*patente na associação cultural Mercado Negro, em Aveiro, até 19 de Outubro.
3ª a Sábado: 13h - 00h
Domingo: 15h - 00h
R. João Mendonça, 17
3800-200 Aveiro

*Selecção dos poemas
Mercado Negro

*Design e ilustrações
Menina Limão

manhã

ofereceram-me um avental para a alma. faltam-me as luvas para abrir o forno.

escrevi-te uma carta. desenhei todas as letras de cada palavra sem levantar a caneta do papel (os tês e os is não contam). fechei o sobrescrito. agora têm umas tiras autocolantes e o valor do selo já impresso. saí com um vazio nas mãos, um buraco no sítio dos gestos sem peso. tapei-o com a senha da minha vez. sou a seguir.

como é que era mesmo? duas voltas para a direita, não, duas voltas para a esquerda. tonta, tonta. tocaste-me na ponta do nariz. o choque. ligada à terra com a chave na mão, sou condutora de electrões. é entrar, é entrar. cuidado com as correntes de ar.

raízes de flores comestíveis
entra. o universo não tem porta.
estava a fazer uma salada. queres?


[para r.]

estiquei o braço e toquei na estrada. estava quente.

ia distraída a olhar para o chão como sempre. naquele dia o sol nasceu-me aos pés. teimosa a vida rebenta-me na cara, não se insinua em imagens de calendário. flores que despontam, árvores despidas. gelo e orvalho.

continuo com a mala aberta, entre uma e outra viagem. o salto não chegou à margem, pousei na pedra a meio do rio, por um

instante.

aproveito para lavar a roupa sem apagar os odores. este espelho mostra-me uma pele diferente. que me dirá ele da próxima vez que me vir?
volto já

origamim

tradução
dentro da minha cabeça há um ponto onde as linhas convergem. não sofro de astigmatismo interior. mas as palavras saem difusas. sussurros, ruídos, silêncios. máscaras, resíduos do real acocorado no ângulo morto do retrovisor. desfazer a paisagem em panning. fade-out. music loud. credits roll.

engoliste-me com a tua boca azul. aqui em cima sou elástica. ao fundo há luz que mastigo com os olhos do meu corpo espelho.

frequência
de tanto andar sem me mover perdi o eixo do mundo. sentada numa caixa às cores onde tudo cabe. se a abrir saem sons de perto e de longe. uníssono desacerto.

rasto

e se os meus braços não param de crescer e se enterram e entrelaçam
nos caules e raízes
e se as pontas dos dedos há muito que os deixaram de sentir,
seguem cegas pelo meio das pedras

então os meus olhos seguem os dedos
são eles que descem gelados por mim
dois elevadores

vim de viagem com os olhos abertos. sempre abertos. olhos de dente-de-leão. vim de costas para o vento para não se perderem as coisas que trago para te mostrar. não me cabem nos bolsos, em malas, cestos ou sacos. tenho de as trazer assim, intactas.

ainda sinto os cabelos na cara
asas pétalas pálpebras pó
deixar correr o fio de voz
a correr

arrastado gosto este de trazer quilos e quilos de letras de chumbo agarrados aos dedos, daquelas que formam palavras incompreensíveis e que por isso mesmo trazem agarradas a si mais palavras que não se compreendem. tenho de lamber os dedos e regurgitar estas coisas. deixar um rasto lustroso no ecrã. queria tomar banho mas receio afogar-me.

ouço
o bater dos meus braços estéreis de voos
já vou!

di gestão
"Figura 6. A não-concavidade permite a existência de múltiplos pontos de coerência diferentes"

ama

clique

pegas em mim
outra vez
amas
sas-me
mas antes
se
paras-me
por cores
verme
lho
azul
ama
relo
ama
relo
azul
verme
lho
por cores
se
paras-me
mas antes
amas
sas-me
outra vez

mar
entre mim e m i m
espuma ou esponja
enquanto amorteço

rem
entre mim e mim
uma pálpebra corre
enquanto me opero

lado b
entre mim e mim, uma película autocolante
dupla face
talvez por isso não pertença





[foto: homem aranha]

firme
sentada à beira da cadeira, com as costas direitas como deve de ser.
o meu corpo não ocupa a cadeira, simplesmente lhe toca porque tem de ser.
sentada à beira. sem cair. como deve de ser.
não cruzo as pernas. não encolho os ombros. não estalo os dedos.
se respiro ninguém nota. se sopro ninguém sente.
se baloiço ninguém vê.

virei-me para a parede. alisei pacientemente a prata com o polegar. quando estava bem lisa, praticamente nova, dobrei-a em três. dobrei-a mais uma vez, ao meio. e novamente ao meio, no sentido contrário. senti o quadrado transformar-se em cubo. mágico.

um de maio

liberdade é poder
ser

fora
detestava fazer marcha-atrás, mas preferia os olhos do espelho.

dentro
ouvia em eco, não se sabia porquê. ouvia as respostas dos outros enroladas nas suas próprias perguntas. aprendeu a ouvir com os olhos.

dia ao contrário
hoje o fundo é branco, não há pontos nem linhas, nem partes para destacar. hoje inundei-me de luz. inteira.





[foto: homem aranha]
abrindo
e fechando
fria
a quente

suspension of disbelief
não sei se é mesmo mar a musselina azul e se são ondas as riscas brancas que me cruzam o peito. sei que me encarregaram dos efeitos especiais e de temperar a água abrindo e fechando as torneiras. ora a fria ora a quente.