um casaco de inverno, uma segunda pele, grosso como a casca de um carvalho velho, permeável como o leito de um rio sempre novo. aprendi a enrolá-lo como um xaile, um turbante para a alma que me aquece e areja o lugar onde se cozinham as dores e se afinam os mecanismos do riso. tecnologia de ponta esta teia e esta trama quente e fria ao mesmo tempo, sem regulador de intensidade. sempre presente.
o monstro sorridente da segunda circular
esgueirou-se pelas falhas da fita cola. encheu as órbitas de autocolantes, dois planetas sem espessura. fez sua a pele que lhe amarfanhava os gestos. pôs o seu melhor sorriso e desafiou os seres parados. amanhã, quem sabe, viajará num forro rasgado, num estofo coçado, num sonho estafado. procura-se músculo invisível, monstro que se entranha entre o osso e a pele.
obs.
o caminho faz uma curva em cotovelo muito comprida. é mais fácil atalhar pelo meio da terra e subir depositando alternadamente o peso nos degraus improvisados pelas raízes expostas. os jardineiros que se amanhem. as minhas calças são azuis, não verdes. pensava que ninguém o via e no entanto. ao chegar lá acima sacudiu os pés e seguiu pelo chão empedrado.
e, na urgência da linha, esticou-se, em pontas, espreguiçou-se. depois baixou-se e descalçou-se. percorreu-a em sentido inverso, saboreando cada corpo de cada letra com a planta dos pés. seixos que tocavam todos os pontos do seu próprio corpo. os sons lambendo-lhe o cansaço como um rio em sentido contrário. um dia aprenderia a ler com a pele.
apneia
olha
o reflexo no lado de dentro das minhas pálpebras
os dias liquefeitos e povoados por polvos
estradas sem curvas
corpos sem estradas
mãos amputadas de tinta
ideias amputadas de mãos
e, do lado de fora,
o ar que preenche o resto dos dias
corpos inteiros
de pulmões cheios
imagem: fotograma do filme "wide awake" de alan berliner
obs.
há um homem que se cruza no meu caminho todos os dias em sítios improváveis. tem um andar rápido, decidido, e um olhar de quem já chegou antes das pernas e descansa à espera que o corpo se junte a ele. geralmente vejo-o na estrada das vinte e oito oliveiras. uma recta comprida, sem passeio, com vinte e oito árvores velhas e raquíticas, sem o brilho lustroso das centenárias que plantam nas rotundas. estas, pelo contrário, parecem crescer sobre o muro de pedra, sem terra que lhes alimente as raízes. será certamente uma ilusão de óptica provocada pela diferença de cota do terreno por detrás do muro. o homem tem um ombro ligeiramente descaído.
*patente na associação cultural Mercado Negro, em Aveiro, até 19 de Outubro.
3ª a Sábado: 13h - 00h
Domingo: 15h - 00h
R. João Mendonça, 17
3800-200 Aveiro
*Selecção dos poemas
Mercado Negro
*Design e ilustrações
Menina Limão
escrevi-te uma carta. desenhei todas as letras de cada palavra sem levantar a caneta do papel (os tês e os is não contam). fechei o sobrescrito. agora têm umas tiras autocolantes e o valor do selo já impresso. saí com um vazio nas mãos, um buraco no sítio dos gestos sem peso. tapei-o com a senha da minha vez. sou a seguir.
tradução
dentro da minha cabeça há um ponto onde as linhas convergem. não sofro de astigmatismo interior. mas as palavras saem difusas. sussurros, ruídos, silêncios. máscaras, resíduos do real acocorado no ângulo morto do retrovisor. desfazer a paisagem em panning. fade-out. music loud. credits roll.
arrastado gosto este de trazer quilos e quilos de letras de chumbo agarrados aos dedos, daquelas que formam palavras incompreensíveis e que por isso mesmo trazem agarradas a si mais palavras que não se compreendem. tenho de lamber os dedos e regurgitar estas coisas. deixar um rasto lustroso no ecrã. queria tomar banho mas receio afogar-me.
firme
sentada à beira da cadeira, com as costas direitas como deve de ser.
o meu corpo não ocupa a cadeira, simplesmente lhe toca porque tem de ser.
sentada à beira. sem cair. como deve de ser.
não cruzo as pernas. não encolho os ombros. não estalo os dedos.
se respiro ninguém nota. se sopro ninguém sente.
se baloiço ninguém vê.
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