oh eu vi tudo, sabes que sim
fui enchendo os nossos corpos transparentes de 50 microns
abertos em cima
com o que apanhava
para que não voássemos
porque se voássemos
quem sabe onde estaríamos
debaixo de uma pedra
no fundo do mar
presos numa árvore
e depois?
então tudo o que pesava servia
o que me dizias sem olhar para mim
o que me repetias com a voz perfeita, as falas do teu guião
e sobretudo o subtexto
aquela vez em que te vi reparar na minha pele do avesso
aquela vez em que te vi reparar na minha pele do avesso
agora que podíamos ser dois seres inteiros
sem nada em que pudéssemos tropeçar
com o caminho livre de fundos falsos
cada um em seu carril paralelo
higienicamente juntos, sem passado
agora que podíamos ser dois seres inteiros
ficámos para sempre presos aos equívocos
gavetas vazias empurradas à força para dentro do peito
palavras escritas no corpo com a ponta da faca
e aquele cheiro tão característico dos comboios parados
aquele perfume de viagens liquefeitas em metal incandescente
que se adivinha nas faúlhas da travagem
e tudo o que resta é
aquela vez em que te vi reparar na minha pele do avesso