«ai a merda»
aqui vai o poema
querido amigo
que retirei da cartola daquele impulso
mais vale tarde porque nunca é tarde
o tempo em que estamos não é mais que o nosso tempo
aquele com que forramos cada encontro
e vamos escorando os deslizamentos de horas
passei dias a tocar-lhe ao de leve
eu
braço articulado de uma máquina de peluches
à procura de um corpo sem lugar cá em casa
hoje sentou-se à minha frente uma mulher mais velha que eu
a cara não condizia com as pernas nuas
e o peep toe mostrava umas unhas demasiado compridas
sentou-se na fila em frente da sala de espera
e eu esbarrava nela sempre que me erguia do livro
cheirava a decadência tinha um ar salgado e seco
e alguma doçura cristalizada no modo como se movia
ou se calhar era ao contrário
a mulher não sabe que vive agora num poema
eu nunca saberei quem é aquela mulher de pernas nuas
a quem desejei arrancar a pele do rosto
para perceber se seria jovem por dentro
quanto ao meu repertório de setas
guardo-o entre aspas no bolso de dentro junto ao peito
minúsculos braços articulados
que me salvam de viver empalada
[poema a pedido, 24 de agosto de 2015]