bolbo

larga as cascas, disseram
guarda as cascas, disseram

e as cascas secaram
partiram-se em esquinas
perderam-se em portas
arrastaram no chão
fizeram-se em pó
por baixo outra casca e outra e outra
casacos de lã em noites de verão

larga as cascas, disseram
guarda as cascas, disseram

e as cascas quase secaram
deram abrigo
limparam lágrimas
travaram chuva
foram lenço, lençol, ligadura
biombo, cobertura
janela, alçapão

larga as cascas, disseram
guarda as cascas, disseram

e as cascas frescas sangraram
sangue ácido, incolor
sangue sem tempo de vida
sangue sem tempo de o ser
sangue que pôs olhos em ferida

larga as cascas, disseram
guarda as cascas, disseram

e ela já quase sem corpo
pediu que parassem
e meteu-se na terra
para ficar perfeita uma parede azul exige muitas demãos de tinta, mais ainda se for rugosa. cobrir de forma homogénea uma parede rugosa e porosa, uma parede que chupa a tinta, exige força e acuidade visual, persistência, bolhas abaixo dos dedos, onde chega o polegar, escaldão nos ombros, se for verão. uma parede rugosa é um mapa topográfico, uma maqueta de mundo que pode ferir, se nos escapar a mão. exige distância. não falta, de longe, quem veja manchas, diferenças no tom, imperfeições. e proximidade. para cobrir cada vertente, cada abismo, cada cume, cada vale, depressão ou cavidade.

para ficar perfeita uma parede azul exige que cocemos o nariz com as mãos sujas de tinta, que rocemos uma coxa na tinta fresca quando nos levantamos para descansar os joelhos. que nos espreguicemos, longe, com os braços em conta-gotas, antes de nos encavalitarmos no muro para chegar os sítios mais altos. pingos de azul na cara, soprar os cabelos do rosto, à falta de vento, moldar os pés nus às telhas quentes do sol, barro com barro. para ficar perfeita uma parede azul exige minúcia de joalheiro, mas também gestos largos e grosseiros. água, de tempos a tempos, e uma cadeira de plástico por onde trepar e onde possamos regressar.


















imersão

tu sabes que nunca hesitei em mergulhar sem suporte de vida, levar ao limite o fio de luz que ia libertando com um rigor de ourives, para emergir com as mãos cheias de esponjas e de corais vermelhos. descer a noventa pés e regressar. cinco minutos de apneia. sem outro peso que não o meu próprio peso e o peso de todas as respirações que por mim ficavam suspensas. sabes que o mar me amava, que me despia do corpo, que me recebia inteiro com a sua pele salgada e me conduzia, com o seu movimento, àquele outro mar que trago dentro de mim. que ainda trago. dentro.


eu sei que era o meu perfil que desenhavas na areia molhada, enquanto esperavas que eu regressasse, ainda um pouco inebriada com o iminente exaurir da luz. era por isso que ficava tanto tempo com a tua mão nas minhas. queria perceber como é que cada um dos meus riscos se fixara na ponta dos teus dedos, como é que o teu braço decorou o meu contorno, que movimento era esse que me arrancava de dentro de ti.

gosto de lavar a loiça com música. não importa o que se faça, tudo é melhor com música. gosto de lavar os pratos e os copos por onde havemos de comer e beber tantas vezes. sentir com o tacto se está tudo limpo, porque a luz é pouca. gosto de pouca luz em casa. de ter todos os sentidos concertados para me devolverem o mundo, me aplacarem o mar, me redesenharem a sombra. ao lado, na sala, vais esboçando o presente de um traço. desenhas olhos e asas, corais vermelhos abandonados na praia. acabaremos a noite numa só silhueta, fundidos com a casa, despidos de paredes, inteiros.
Fotografia: Estelle Valente