imersão
tu sabes que nunca hesitei em mergulhar sem suporte de vida, levar ao limite o fio de luz que ia libertando com um rigor de ourives, para emergir com as mãos cheias de esponjas e de corais vermelhos. descer a noventa pés e regressar. cinco minutos de apneia. sem outro peso que não o meu próprio peso e o peso de todas as respirações que por mim ficavam suspensas. sabes que o mar me amava, que me despia do corpo, que me recebia inteiro com a sua pele salgada e me conduzia, com o seu movimento, àquele outro mar que trago dentro de mim. que ainda trago. dentro.
eu sei que era o meu perfil que desenhavas na areia molhada, enquanto esperavas que eu regressasse, ainda um pouco inebriada com o iminente exaurir da luz. era por isso que ficava tanto tempo com a tua mão nas minhas. queria perceber como é que cada um dos meus riscos se fixara na ponta dos teus dedos, como é que o teu braço decorou o meu contorno, que movimento era esse que me arrancava de dentro de ti.
gosto de lavar a loiça com música. não importa o que se faça, tudo é melhor com música. gosto de lavar os pratos e os copos por onde havemos de comer e beber tantas vezes. sentir com o tacto se está tudo limpo, porque a luz é pouca. gosto de pouca luz em casa. de ter todos os sentidos concertados para me devolverem o mundo, me aplacarem o mar, me redesenharem a sombra. ao lado, na sala, vais esboçando o presente de um traço. desenhas olhos e asas, corais vermelhos abandonados na praia. acabaremos a noite numa só silhueta, fundidos com a casa, despidos de paredes, inteiros.
Fotografia: Estelle Valente |