uma maneira de ver se estou viva
monto cuidadosamente a câmara no tripé e defino a velocidade e o diafragma. lenta. fecho. rodo o foco e centro a lente, objectiva. corro para o enquadramento. se aparecer no negativo é porque estou, o negativo é como uma teia que se alimenta da existência. revelo, amplio, emolduro ou arquivo.
pus a casa à venda. não queria mesmo vendê-la. a casa era bonita, tinha uma luz filtrada de verde pelas copas das árvores e madeiras tortas e carcomidas, do tempo do tabique. o chão parecia o chão de um barco que se torce e range à procura das milhas, e as escadas interiores eram íngremes mas directas: um lanço apenas. tinha doze janelas viradas para três direcções: poente, nascente e sul. pus a casa à venda e vendi-a mesmo.
história de uma menina que nasceu com uma antena na cabeça
ela não sabia que a tinha, os pais também não. quando nasceu o transístor a pilhas do segurança da maternidade sentiu as ondas divergir. durante três dias passou a mesma música ininterruptamente. quando tiveram alta o porteiro mudou de estação e resolveu o problema.
na escola primária diziam que copiava pela melhor amiga ou vice-versa. mas, por muito estranho que parecesse, mesmo separadas, uma em cada canto da sala, as respostas na prova eram iguais, tal como a caligrafia: miudinha como formigas num carreiro pautado.
sucederam-se anos de coro. frases ditas mentalmente ao mesmo tempo que os outros e que nunca chegaram a conhecer as cordas vocais da menina. frases ditas a duas vozes, seguidas de espanto ou de gargalhadas.
e anos de interferências. com os electrodomésticos em geral. choques nas coisas mais improváveis. linhas trocadas antes da fibra óptica. computadores em convulsão electrónica. telemóveis a esvaziar baterias sem razão aparente.
a menina cresceu muito. ficou alta como uma antena. era muito mais alta que todas as outras pessoas. como algumas árvores que se vêem através do vidro, na via rápida, a caminho do norte e do sul. enormes e plásticas no meio dos eucaliptais.
como cresceu muito passou a captar outras ondas. vindas do lixo atmosférico, dos satélites desactivados e no activo.
começou a incomodá-la a estática. a estática entorpece. deixou de usar aparelhos. andava a pé, escrevia à mão, pagava em dinheiro. mas não conseguiu desligar o rádio que estranhamente emperrara numa estação que só passa um sem-fim. uma música muito antiga.
há pessoas que dão choque. pessoas e coisas. nas coisas é normal e quase previsível, geralmente são de metal: portas de carros, máquinas de sumos. nas pessoas nem tanto. ou talvez, sim. há pessoas que dão choque. não é o mesmo que dizer que se chocam ou que chocam entre si. dão choque se não houver ligação à terra. é essa, pelo menos, a explicação científica.
delay
fui ver o nariz. estava muito calor no são carlos. daquele calor que brinca com o foco da retina. diverti-me a olhar para o fosso da orquestra. para as cordas a tapar os ouvidos quando a percussão eclodia. e para os brilhos pegajosos das peles perfumadas que ofuscavam as caras sem olfacto.
quando sai do teatro encontrei uns sapatos. uns sapatos que já tinha encontrado há muito tempo, noutra zona da cidade. noutra noite. andavam perdidos na minha mala, dentro de um cd sem nome, apesar de os procurar há muito como um perdigueiro. intrigou-me aquele cd que se veio meter na minha mão em vez das chaves e, quando cheguei a casa, juntei os zeros e os uns. um nariz que corre e uns sapatos sem cheiro.
uma maneira de ver
abro um documento e escrevo o meu nome muitas vezes até deixar de ser um nome. entrego-o à senhora do arquivo que me dá o troco em papel. fecho o documento sem o guardar. a senhora do arquivo regista as últimas alterações. podem consultar-se a pedido. a senhora não sabe se está viva. eu sei porque vi.
uma maneira de ver se estou viva
aproximo os lábios de um vidro gelado e sopro. um sopro em forma de exclamação. se embaciar é porque estou. o vidro comove-se com a minha existência. de seguida escrevo as iniciais de todas as palavras de uma frase. ponho um ponto final. apago a frase e vou à minha vida.
pausa
tenho os olhos presos na música que me sai do bolso. a realidade plasmada num imenso videoclip. se conseguisse entrar pela casa do botão e dar outra volta, talvez o que é de dentro ficasse lá dentro e o que é de fora ficasse fora. para já é como se andasse de cachecol em pleno verão. um cachecol comprido, com muitas voltas. um contorcionista a dias.
fotograma
destaquei-o com cuidado e envolvi-o em plástico, daquele com bolhas de ar. era o primeiro. doíam-me os dedos de tanto ensaiar o movimento perfeito. fechei a gaveta. faltam vinte e três, pensei. e saí. já ia a mais de meio do caminho, quando me lembrei que não tinha fechado a gaveta à chave.
disciplina
passei. passei a limpo todas as páginas do meu caderno de rascunhos. não foi fácil perceber a caligrafia. coisas que julgava claras e óbvias não cabiam na carga da esferográfica azul. foram necessários parágrafos e parágrafos de espirais raivosas num papel à parte, até que a tinta começasse de novo a fluir.
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