história de uma menina que nasceu com uma antena na cabeça

ela não sabia que a tinha, os pais também não. quando nasceu o transístor a pilhas do segurança da maternidade sentiu as ondas divergir. durante três dias passou a mesma música ininterruptamente. quando tiveram alta o porteiro mudou de estação e resolveu o problema.
na escola primária diziam que copiava pela melhor amiga ou vice-versa. mas, por muito estranho que parecesse, mesmo separadas, uma em cada canto da sala, as respostas na prova eram iguais, tal como a caligrafia: miudinha como formigas num carreiro pautado.
sucederam-se anos de coro. frases ditas mentalmente ao mesmo tempo que os outros e que nunca chegaram a conhecer as cordas vocais da menina. frases ditas a duas vozes, seguidas de espanto ou de gargalhadas.
e anos de interferências. com os electrodomésticos em geral. choques nas coisas mais improváveis. linhas trocadas antes da fibra óptica. computadores em convulsão electrónica. telemóveis a esvaziar baterias sem razão aparente.
a menina cresceu muito. ficou alta como uma antena. era muito mais alta que todas as outras pessoas. como algumas árvores que se vêem através do vidro, na via rápida, a caminho do norte e do sul. enormes e plásticas no meio dos eucaliptais.
como cresceu muito passou a captar outras ondas. vindas do lixo atmosférico, dos satélites desactivados e no activo.
começou a incomodá-la a estática. a estática entorpece. deixou de usar aparelhos. andava a pé, escrevia à mão, pagava em dinheiro. mas não conseguiu desligar o rádio que estranhamente emperrara numa estação que só passa um sem-fim. uma música muito antiga.