era um dia de lágrimas. assim se chamavam as tempestades naquele país, aquelas tempestades que parecem sacudir violentamente a terra e dividi-la em gomos como um brinquedo de plástico. ela, aguarela, afundava-se num sofá vermelho que, por acaso, encontrara no caminho, julgando poder assim proteger-se da chuva, os braços abraçando o braço do sofá. ao fim de pouco tempo a pele, o vestido branco e o vermelho do sofá deram lugar a uma só cor.
esteve ali muito tempo.
ou pouco tempo. ou tempo nenhum, já que o tempo parecia ter estagnado naquela cor líquida.
pela porta verde do
caminho entrou um sujeito impecável, impermeável, protegido por um
paralelepípedo de plexiglas. como uma bisnaga, caminhava muito direito, sempre
com a tampa enroscada e os rótulos irrepreensíveis. perguntou-lhe, acrílico, o
que tinha, espremeu a expressão mais condoída que conseguiu, quis saber se
podia ajudar. ela explicou que não, a menos que conseguisse desligar a
tempestade que a ensopava e ele retorquiu que até ouvira falar da existência de
um botão stop, mas não sabia onde se encontrava, se dentro se fora. a mancha
liquefeita não parava de crescer e isso parecia incomodá-lo. fez-lho saber.
sabes, eu sei que, mas. é que contigo aí não posso passar, seguir o meu
caminho, percebes. não fica bem, eu que ando em linha recta, pôr-me agora com
rodeios.
ela pediu-lhe um abraço.
esperava, com isso, conseguir soltar-se das fibras vermelhas do sofá, respirar
fundo e disfarçar os vincos do vestido. ele assentiu.
desprendeu da cintura um
molho de chaves e abriu as duas fechaduras de cada uma das portinholas
transparentes por onde fez passar os seus dois braços de polipropileno. abraçou-a como um aranhiço, um abraço sem espessura.
ela contentou-se,
levantou-se e dirigiu-se a um espelho embaciado onde desenhou, com o indicador,
dois olhos e uma boca. agradeceu e saiu de cena.