dormir ao relento coração ao vento
o sol come-lhe a cor
a chuva empapa-lhe os passos
a bruma amortalha-lhe o sono
feito de muitas vigílias

preciso de uma janela
nestas paredes cardíacas
uma janela larga
com vidros de ver só por dentro
e véus pendurados por fora
presos no para
peito
com nós
tive um sonho tripartido
três acções em simultâneo atrás da película de sono
que me deixaram nas mãos três imagens em cutelo

numa um homem submergia
num mar branco
de esferovite
o rosto decalcado num pano hirto
sujo
um sudário que não afundava
uma jangada sem fundo
presa pelos olhos ao céu


noutra estava perdida
tinha pressa
transpirava
as ruas bifurcavam-se como línguas
as pessoas voltavam-se à minha voz
mas só tinham costas
as pessoas eram casas

na terceira estavas comigo
e dormias
numa cama maior que o quarto
eu não cabia na cama
dormia dentro de ti
tu eras o meu quarto sem cama
eu era uma cama-jangada

lura

pois mas isso agora que im
porta? abriste-me
essa nesga de ti
de onde se avista um mar inteiro
e eu tropecei nos esc
olhos
não cheguei a fe
rir-me
mas senti assomarem-se as lágrimas
depois não eram lágrimas
era eu que nadava debaixo de água
de olhos abertos mesmo sabendo
que o sal os castiga
vi um navio naufragado e várias âncoras com histó
rias
de muitas t
erras
e fragas de contornos instáveis
vistas de baixo pela lente de água
vi bombas de guerras antigas cobertas de algas
ou almas cobertas pelas ondas
mas almas que eram só vozes em loop
diziam-te
diziam todas as palavras de que és feito
(eu perguntava-me onde estariam as vozes que me dizem a mim)
depois não eram vozes era vento
e eu uma vela nova pálpebra pronta a recebê-lo
o ar frio a consolar-me a pele
a teia e a trama a remendar-me as pausas
a disfarçar os desacertos do sonho
a casear as bainhas por onde passar o cordame
que nos atava as mãos ao leme
nas correntes contrárias da foz

o sol sei que partilhamos
naquela pedra branca e quente
que fica de frente para o rio
(o adamastor nas nossas costas)
e a lua é a clara
bóia
por onde respiram os nossos braços sedentos

a minha lura sei que fica ao lado
de uma nascente

árvore

porque no fim é só connosco que nos deitamos
com aquele que nunca dorme
que não se pespega no espelho a gritar-nos que somos tronco e membros
que não embacia o vidro
é menos denso que o vento
que não precisa de falar em surdina
para nos ensurdecer
que nos amordaça sem mãos
que nos engole sem boca
que nos digere inteiros sem a acidez do tempo
os vinte e um gramas de gente que pesam mais 

que todos os céus plúmbeos de toda a literatura
mesmo a que não vive


sou cada vez menos o meu corpo
mesmo que cada vez mais o sinta
sou cada vez mais aquela que desa parece
nas páginas rasuradas da agenda
acordo folha filha de papel
adormeço folha mão amachucada