s ó s e i s e r s e d i m e n t u

pára, escuta, ouve. o ar a entrar pela fresta da porta antifogo e o fogo no peito a alastrar como um ácido ao som da música gravada que te persegue pelos espaços públicos. e, de repente, naquele cubo branco, és como um filtro que separa as partículas nocivas das outras. debaixo de um sol fluorescente.

espera, deixa-me ver o que há dentro daquela casa. sei que tens pressa, mas é só um minuto. sabes que gosto de ver casas e esta tem a luz acesa. vejo um corredor comprido e um telefone à porta. três paisagens dez por quinze de dois em dois metros. estão demasiado altas. longe da linha do olhar, perdidas no passepartout. lá ao fundo há duas portas pequenas, uma está aberta. ouço música. é o som de um piano. o corredor pintado de verde. não, é o som de um rádio. o corredor pintado de verde com rodapés brancos. não há portas no corredor, só um telefone à porta.

under_score
links
Edit-Me
Edit-Me
why don't you

espero
os pés enterrados na estrada. a cabeça nas feras. a ba teria tem um r isco.

espera
tenho uma esfera dentro, um planeta sem água potável, cuja função é restabelecer o equilíbrio, servir de lastro, purificar o gesto.

a caixa de correio cheia de cartas. cartas cartas poucas. ainda assim abriste a caixa, pegaste em todas, levaste-as para casa. puseste carne a descongelar no microondas. já não comes carne, mas só há carne no congelador. escolheste a potência mínima e o máximo de tempo possível. sentaste-te à mesa a desafiar a luz daquela hora tardia. pacientemente dispuseste os envelopes, separados por tamanho, cor, selo. estava ali tudo, um tarot perfeito a dizer-te que era tempo de agir e contudo.
rasgaste os envelopes compridos, sem os abrir, em pedaços pequenos. pedaços cada vez mais pequenos, até restarem apenas estilhaços de letras impossíveis de relacionar. as janelas dos envelopes deixaste para o fim. umas sobre as outras, vidros duplos sobrepostos, rasgados em tiras perfeitas. os outros envelopes, os não normalizados, abriste com todo o cuidado para não ferir a caligrafia, mesmo que impressa a jacto de tinta. as folhas pulverizaram-te os dedos. por momentos julgaste ter nas mãos uma fórmula instantânea de comunicação. adicionar água. mexer. deixar repousar. varreste o pó para dentro dos sobrescritos e fechaste-os com uma dobra.
percebeste, ao entrar na cozinha com as mãos cheias de papéis rasgados, que a carne começava a cozer mas devia estar congelada por dentro.

passaste a noite a coser um vestido. a coser e a bordar. porque achas sempre que consegues fazer com que tudo o que queres fazer caiba no tempo que tens. tinhas razão. conseguiste acabar. mesmo a tempo de tomar um duche e pentear os cabelos desgrenhados. saíste para a rua a cheirar bem e com os passos escondidos debaixo do vestido novo bordado à mão, mas a cara mostrava as horas passadas a fio. o ar gelado da manhã foi como um tónico para as linhas em volta dos olhos. a tesoura esquecida entre o médio e o indicador.

anda cá. senta-te aqui. a cadeira não tem costas, mas tu também não. fica mais cinco minutos. se olhares para dentro verás que não é o coração a falar em código morse. ouve o som da percussão. aquelas pessoas tiveram de praticar muito para produzir um som assim. também elas tocam de olhos fechados. pagaste o bilhete para entrar, aproveita. mais tarde pões o bilhete ao lado dos outros, no quadro magnético. podes observá-lo preso por uma ponta, milagrosamente fixo pela mesma força invisível que te afasta agora do centro de gravidade.

tarde no jardim
ali ao lado a pedra quadrada que servia de mesa quando brincava às casas. à volta da pedra agora há ervas e silvas, mas ervas em flor. naquele jardim já não crescem bifes com batatas fritas. refeições clandestinas. as folhas compridas dos lírios e as flores de sardinheira há muito que são manta morta. descanse em paz, senhor jardineiro, já não brinco nesse canteiro.

– já vais?
– vou.
– fica.
– onde?

miljø
aprendi a ler muito cedo, antes mesmo de saber ler. era frequente, em festas de aniversário e visitas a casa de amigos, ser subtilmente desviada para um quarto vazio onde se tirava a prova dos nove. um jornal, uma bíblia, a lista telefónica, qualquer coisa servia para provar que sabia ler de facto. no fundo achavam que tinha decorado todos os livros infantis e todos os fascículos da teleculinária, mas vacilaria perante a primeira linha de silvas nas páginas amarelas. não vacilava. saía em braços acolchoada pelos ahs e ohs que provocava nas expressões dos adultos, aliviada por ter superado o teste, surpreendida com o tamanho da admiração. surpreendida com o tamanho da agressão – pequena e invisível como uma agulha num palheiro.


tak mariana pelo artigo!

máquina do tempo
não gosto de arrancar folhas ao calendário. gosto de andar páginas para trás e rever os desenhos, os apontamentos, uma frase solta que apanhei no radar, os dias que mereceram círculo e os que ficaram em branco, sem um risco, por falta de tempo ou por falta de tinta. gosto de sentir a página a virar e de ouvir o som do papel, a textura quebrada pelos sulcos das letras que enriquecem o toque dos dias. se fechar os olhos são como paisagens que não precisam de luz para ser vistas.


merci kiyé pour la photo !

2
perspectiva
o interior do submarino parecia-me agora uma jaula, uma caixa para transportar animais em viagem. mas não havia uma mão a segurar na caixa, nenhuma mão que pudesse morder para mostrar a minha frustração. aproximei-me do cais, com as suas pinturas desbotadas. não havia uma única pintura recente.
que mania de fazer listas e não as rever. estava na lista, ponto três, ir buscar a garrafa de oxigénio. a impossibilidade sobrepunha-se, pesada, à vontade de realmente sair. teria eu vontade de conhecer aquele porto de pessoas de respiração suspensa? segundo o meu guia, antes de sair de casa, os habitantes da ilha respiram fundo de forma a armazenar oxigénio em quantidade suficiente para o resto do dia e vão-no libertando com parcimónia, para não o esgotarem no primeiro encontro. caminham direitas, com a boca atada num nó como um balão de borracha, e limitam os cumprimentos a um piscar de olhos, não fosse um movimento mais brusco desatar o nó e exauri-las. as portas e janelas das casas estão completamente vedadas ao exterior, existindo, ao lado da torneira da água quente, uma saída de ar e um pressurizador. as garrafas de oxigénio foram abolidas nesta ilha por limitarem a liberdade individual e provocarem problemas de postura.
não queria realmente sair. mas queria poder sair se quisesse.

1
horizonte
cheguei de submarino e não pude sair. esqueci a garrafa de oxigénio noutro porto. ficou lá para ser limpa por dentro e de novo cheia, mas perdi-me nas correntes de ar da ilha e não voltei para a reclamar. há ar em abundância naquela ilha. tanto ar que os seus habitantes deixaram de respirar, o ar entra-lhes pelo nariz, pela boca e pelos poros, até aos pulmões, sem que tenham de fazer qualquer esforço, qualquer movimento. tanto ar que podia simplesmente ter aberto a minha garrafa. podia simplesmente ter desenroscado a tampa, aberto a válvula e deixado o ar entrar. mas queria que fosse limpa. por dentro. o homem olhou-me de uma forma estranha. há muito tempo que não via uma garrafa de oxigénio. pelo menos uma daquele modelo.
naquele porto não havia ar respirável. era um porto paralelo. lá fora a paisagem era normal, azul, branco, preto, vermelho, mas o ar era como vácuo que nos suga, vingativo, se o tentarmos inalar. no cais jazem as marcas dos barcos e dos marinheiros de muitas viagens longínquas que lá foram só para dizer que lá estiveram.

há coisas inexplicáveis e explicações que queimam a língua com o seu sopro de verdade. sei que sou e sinto, mas por vezes a pele mente e os sentidos enganam. vejo através de um periscópio que demorei anos a construir. agora que está pronto descubro que não pensei como fazer para limpar a lente quando as partículas de sal se tornarem em parede sedimentada, em pálpebra inorgânica. como os ruídos que ouvimos mesmo só de olhar para uma fotografia e que se acumulam em nós, nas dobras dos sonhos.

lente
não aumenta, não corrige, não distorce, não sente.
absorve e vomita o mundo para dentro da
mente

há uma ilha onde deus respira e os santos são dias que passam por nós, imateriais, indiferentes e insaciáveis. chega-se de barco e no porto há cacifos onde se pode deixar a bagagem por algumas horas. não são bem cacifos, são prateleiras brancas com uma cortina de chita que tapa aquilo de que verdadeiramente não precisamos. há quem nunca reclame a bagagem. e há quem chegue tarde de mais, à hora do fecho.

onde?

olha.

não importa o tamanho das palavras,
a força é a mesma.
a força do elástico que as solta e que as prende.
as palavras não ditas são pedradas.
as palavras nunca ditas são pedras
por onde crescem as plantas dos pés
à procura de alimento.

a ilha disse adeus