a caixa de correio cheia de cartas. cartas cartas poucas. ainda assim abriste a caixa, pegaste em todas, levaste-as para casa. puseste carne a descongelar no microondas. já não comes carne, mas só há carne no congelador. escolheste a potência mínima e o máximo de tempo possível. sentaste-te à mesa a desafiar a luz daquela hora tardia. pacientemente dispuseste os envelopes, separados por tamanho, cor, selo. estava ali tudo, um tarot perfeito a dizer-te que era tempo de agir e contudo.
rasgaste os envelopes compridos, sem os abrir, em pedaços pequenos. pedaços cada vez mais pequenos, até restarem apenas estilhaços de letras impossíveis de relacionar. as janelas dos envelopes deixaste para o fim. umas sobre as outras, vidros duplos sobrepostos, rasgados em tiras perfeitas. os outros envelopes, os não normalizados, abriste com todo o cuidado para não ferir a caligrafia, mesmo que impressa a jacto de tinta. as folhas pulverizaram-te os dedos. por momentos julgaste ter nas mãos uma fórmula instantânea de comunicação. adicionar água. mexer. deixar repousar. varreste o pó para dentro dos sobrescritos e fechaste-os com uma dobra.
percebeste, ao entrar na cozinha com as mãos cheias de papéis rasgados, que a carne começava a cozer mas devia estar congelada por dentro.