repetir
dobar meadas contigo. gosto daqueles momentos em que nos olhamos olhos nos nós e o movimento dos braços disfarça o nervosismo. tu enrolas o novelo, altiva. eu não descolo as mãos dos fios, mesmo que os dedos por vezes brinquem com a ponta que foge. não vês que não sei da ponta. não vês que só finjo que sei como se faz. não sei o que ser quando já não houver mais linhas nas minhas mãos que as linhas das minhas mãos, sem outro horizonte que me corrija a perspectiva. o novelo já está maior que tu. eu sou do tamanho da meada. do tamanho das minhas mãos. iguais às tuas.
transparente
como uma casca de cebola. como uma das. como as. como as cascas.
mergulhei num mar em camadas e saí com os olhos salgados,
mas com lentes de aumentar.
como uma casca de cebola. como uma das. como as. como as cascas.
mergulhei num mar em camadas e saí com os olhos salgados,
mas com lentes de aumentar.
recebi um embrulho suspeito. papel manteiga e uma guita a segurar as pontas. recebi-o num movimento velado por olhares cúmplices. guardei-o na mala e trouxe-o para casa, protegido por cadernos, canetas, catálogos, óculos, moedas, multas e chaves. lá dentro está um livro. sempre que termino de ler mais uma página, volto a refazer o embrulho. nunca se sabe.
devir
vim cá hoje pagar a minha dívida. não me conheces, nunca me viste ou talvez, sim, pelo canto do olho. mas uma vez tocaste-me. eu estava vestida de preto, com um cachecol verde e, quando olhei, as árvores eram verdes. não era um verde cor de árvore, era um verde cor de cachecol verde. senti-me um conta-gotas que espalha cores improváveis e, no entanto, tão próximas das cores verdadeiras. um conta-gotas numa imagem. esse foi o dia em que estive mais perto da verdade. rodeada de árvores verdes cor de cachecol. toma este beijo. devo-te o meu devir.
vim cá hoje pagar a minha dívida. não me conheces, nunca me viste ou talvez, sim, pelo canto do olho. mas uma vez tocaste-me. eu estava vestida de preto, com um cachecol verde e, quando olhei, as árvores eram verdes. não era um verde cor de árvore, era um verde cor de cachecol verde. senti-me um conta-gotas que espalha cores improváveis e, no entanto, tão próximas das cores verdadeiras. um conta-gotas numa imagem. esse foi o dia em que estive mais perto da verdade. rodeada de árvores verdes cor de cachecol. toma este beijo. devo-te o meu devir.
segui as sombras e encontrei o molde dos passos.
fui sopro e subi ao topo de mim.
de lá vi os dias, as horas e os ponteiros que indicam outros lugares.
é aqui, no meu corpo sem peso, que me sinto quase tudo por oposição a nada.
é aqui que os ventos contrários desaguam as coisas que querem contar.
se os desejos falassem respiravam por nós.
cantabile
escrevi uma frase num papel pequeno. uma frase que sugava todas as outras palavras da minha cabeça e engordava até quase não caber dentro de mim. escrevi-a à força, no papel que tinha à mão, um recibo impresso com uma fita gasta. a caligrafia saiu oblíqua. escrevi a frase muitas vezes até não restar nada. vogais e consoantes anuladas pela sobreposição dos traços. dissonância a uma só voz. harmonia.
decidi fazer um piquenique. sozinha. saí sem cesta nem manta, nem copos para brindar. meti-me no carro e deixei que me conduzisse. cheguei ao mar depois da mata onde pessoas verdadeiras faziam piqueniques verdadeiros, sentadas em cadeiras coladas a mesas que se dobram dezasseis vezes e ficam reduzidas a quase nada. não ocupam espaço, nem as mesas, nem as cadeiras. nem as pessoas. nem os garfos e as facas que levam à boca.
decidi que o meu piquenique seria no primeiro lugar onde conseguisse estacionar o carro, desde que fosse de frente para o mar. consegui. o lugar da ambulância.
não saí para comprar um gelado, mas podia muito bem ter saído. um gelado ou qualquer outra coisa que coubesse num piquenique.
dentro da minha bolha de ar condicionado, senti-me como um insecto. invisível e inoportuno. pronto a ser esmagado. um insecto de sangue frio que não sua nos dias de sol. um insecto com rodas.
conduzi-me de volta através dos piqueniques na mata. restavam só embalagens e folhas de jornais desportivos. saí do carro e meti o que consegui no lixo. amanhã voltaria com um cesto cheio de mim.
deitei-me de barriga para baixo, o sol a desenhar-me o contorno a preto. fechei os olhos e a terra começou a rodar em todas as direcções. agarrei-me aos joelhos para não cair. parecia que me preparava para a ausência de gravidade, mas só queria andar em frente, de pé como os outros. o dia e a noite sentia-os como solavancos até que deixei de perceber em que hemisfério me encontrava. os olhos, de tanto tempo cerrados, recusavam-se a abrir, afundavam-se e fundiam-se com o rosto, a cabeça, os braços, as pernas, os pés. no seu movimento constante a terra transformou-me de novo em massa disforme. e, numa última comoção, cuspiu-me de novo, inacabada, imperfeita. levantei-me e andei como pude.
tradução e legendagem
as luzes esmorecem, apresentações feitas. dali vejo-os todos, sem lhes ver os rostos. vejo as vozes que esperam o fim para aplaudir. o filme arranca. estou atrás da tela. ninguém me vê projectar. saio a pensar que ainda lá vivo, que ainda regulo o som de retorno. imagino sempre como seria se lhes contasse outra história.
eu espero o tempo que for preciso, não te preocupes. eu compreendo. claro que sim. claro. claro que sim. não vás por aí, passei por lá há pouco e havia um carro igual ao teu parado na faixa do meio. não sei. pois é. claro. claro que sim. nada, estou a ouvir. não, está tudo bem. claro. olha, vou ficar sem bateria. não, podes falar.
pára, escuta, ouve. o ar a entrar pela fresta da porta antifogo e o fogo no peito a alastrar como um ácido ao som da música gravada que te persegue pelos espaços públicos. e, de repente, naquele cubo branco, és como um filtro que separa as partículas nocivas das outras. debaixo de um sol fluorescente.
espera, deixa-me ver o que há dentro daquela casa. sei que tens pressa, mas é só um minuto. sabes que gosto de ver casas e esta tem a luz acesa. vejo um corredor comprido e um telefone à porta. três paisagens dez por quinze de dois em dois metros. estão demasiado altas. longe da linha do olhar, perdidas no passepartout. lá ao fundo há duas portas pequenas, uma está aberta. ouço música. é o som de um piano. o corredor pintado de verde. não, é o som de um rádio. o corredor pintado de verde com rodapés brancos. não há portas no corredor, só um telefone à porta.
a caixa de correio cheia de cartas. cartas cartas poucas. ainda assim abriste a caixa, pegaste em todas, levaste-as para casa. puseste carne a descongelar no microondas. já não comes carne, mas só há carne no congelador. escolheste a potência mínima e o máximo de tempo possível. sentaste-te à mesa a desafiar a luz daquela hora tardia. pacientemente dispuseste os envelopes, separados por tamanho, cor, selo. estava ali tudo, um tarot perfeito a dizer-te que era tempo de agir e contudo.
rasgaste os envelopes compridos, sem os abrir, em pedaços pequenos. pedaços cada vez mais pequenos, até restarem apenas estilhaços de letras impossíveis de relacionar. as janelas dos envelopes deixaste para o fim. umas sobre as outras, vidros duplos sobrepostos, rasgados em tiras perfeitas. os outros envelopes, os não normalizados, abriste com todo o cuidado para não ferir a caligrafia, mesmo que impressa a jacto de tinta. as folhas pulverizaram-te os dedos. por momentos julgaste ter nas mãos uma fórmula instantânea de comunicação. adicionar água. mexer. deixar repousar. varreste o pó para dentro dos sobrescritos e fechaste-os com uma dobra.
percebeste, ao entrar na cozinha com as mãos cheias de papéis rasgados, que a carne começava a cozer mas devia estar congelada por dentro.
passaste a noite a coser um vestido. a coser e a bordar. porque achas sempre que consegues fazer com que tudo o que queres fazer caiba no tempo que tens. tinhas razão. conseguiste acabar. mesmo a tempo de tomar um duche e pentear os cabelos desgrenhados. saíste para a rua a cheirar bem e com os passos escondidos debaixo do vestido novo bordado à mão, mas a cara mostrava as horas passadas a fio. o ar gelado da manhã foi como um tónico para as linhas em volta dos olhos. a tesoura esquecida entre o médio e o indicador.
anda cá. senta-te aqui. a cadeira não tem costas, mas tu também não. fica mais cinco minutos. se olhares para dentro verás que não é o coração a falar em código morse. ouve o som da percussão. aquelas pessoas tiveram de praticar muito para produzir um som assim. também elas tocam de olhos fechados. pagaste o bilhete para entrar, aproveita. mais tarde pões o bilhete ao lado dos outros, no quadro magnético. podes observá-lo preso por uma ponta, milagrosamente fixo pela mesma força invisível que te afasta agora do centro de gravidade.
tarde no jardim
ali ao lado a pedra quadrada que servia de mesa quando brincava às casas. à volta da pedra agora há ervas e silvas, mas ervas em flor. naquele jardim já não crescem bifes com batatas fritas. refeições clandestinas. as folhas compridas dos lírios e as flores de sardinheira há muito que são manta morta. descanse em paz, senhor jardineiro, já não brinco nesse canteiro.
miljø
aprendi a ler muito cedo, antes mesmo de saber ler. era frequente, em festas de aniversário e visitas a casa de amigos, ser subtilmente desviada para um quarto vazio onde se tirava a prova dos nove. um jornal, uma bíblia, a lista telefónica, qualquer coisa servia para provar que sabia ler de facto. no fundo achavam que tinha decorado todos os livros infantis e todos os fascículos da teleculinária, mas vacilaria perante a primeira linha de silvas nas páginas amarelas. não vacilava. saía em braços acolchoada pelos ahs e ohs que provocava nas expressões dos adultos, aliviada por ter superado o teste, surpreendida com o tamanho da admiração. surpreendida com o tamanho da agressão – pequena e invisível como uma agulha num palheiro.
tak mariana pelo artigo!
máquina do tempo
não gosto de arrancar folhas ao calendário. gosto de andar páginas para trás e rever os desenhos, os apontamentos, uma frase solta que apanhei no radar, os dias que mereceram círculo e os que ficaram em branco, sem um risco, por falta de tempo ou por falta de tinta. gosto de sentir a página a virar e de ouvir o som do papel, a textura quebrada pelos sulcos das letras que enriquecem o toque dos dias. se fechar os olhos são como paisagens que não precisam de luz para ser vistas.
merci kiyé pour la photo !
2
perspectiva
o interior do submarino parecia-me agora uma jaula, uma caixa para transportar animais em viagem. mas não havia uma mão a segurar na caixa, nenhuma mão que pudesse morder para mostrar a minha frustração. aproximei-me do cais, com as suas pinturas desbotadas. não havia uma única pintura recente.
que mania de fazer listas e não as rever. estava na lista, ponto três, ir buscar a garrafa de oxigénio. a impossibilidade sobrepunha-se, pesada, à vontade de realmente sair. teria eu vontade de conhecer aquele porto de pessoas de respiração suspensa? segundo o meu guia, antes de sair de casa, os habitantes da ilha respiram fundo de forma a armazenar oxigénio em quantidade suficiente para o resto do dia e vão-no libertando com parcimónia, para não o esgotarem no primeiro encontro. caminham direitas, com a boca atada num nó como um balão de borracha, e limitam os cumprimentos a um piscar de olhos, não fosse um movimento mais brusco desatar o nó e exauri-las. as portas e janelas das casas estão completamente vedadas ao exterior, existindo, ao lado da torneira da água quente, uma saída de ar e um pressurizador. as garrafas de oxigénio foram abolidas nesta ilha por limitarem a liberdade individual e provocarem problemas de postura.
não queria realmente sair. mas queria poder sair se quisesse.
1
horizonte
cheguei de submarino e não pude sair. esqueci a garrafa de oxigénio noutro porto. ficou lá para ser limpa por dentro e de novo cheia, mas perdi-me nas correntes de ar da ilha e não voltei para a reclamar. há ar em abundância naquela ilha. tanto ar que os seus habitantes deixaram de respirar, o ar entra-lhes pelo nariz, pela boca e pelos poros, até aos pulmões, sem que tenham de fazer qualquer esforço, qualquer movimento. tanto ar que podia simplesmente ter aberto a minha garrafa. podia simplesmente ter desenroscado a tampa, aberto a válvula e deixado o ar entrar. mas queria que fosse limpa. por dentro. o homem olhou-me de uma forma estranha. há muito tempo que não via uma garrafa de oxigénio. pelo menos uma daquele modelo.
naquele porto não havia ar respirável. era um porto paralelo. lá fora a paisagem era normal, azul, branco, preto, vermelho, mas o ar era como vácuo que nos suga, vingativo, se o tentarmos inalar. no cais jazem as marcas dos barcos e dos marinheiros de muitas viagens longínquas que lá foram só para dizer que lá estiveram.
há coisas inexplicáveis e explicações que queimam a língua com o seu sopro de verdade. sei que sou e sinto, mas por vezes a pele mente e os sentidos enganam. vejo através de um periscópio que demorei anos a construir. agora que está pronto descubro que não pensei como fazer para limpar a lente quando as partículas de sal se tornarem em parede sedimentada, em pálpebra inorgânica. como os ruídos que ouvimos mesmo só de olhar para uma fotografia e que se acumulam em nós, nas dobras dos sonhos.
há uma ilha onde deus respira e os santos são dias que passam por nós, imateriais, indiferentes e insaciáveis. chega-se de barco e no porto há cacifos onde se pode deixar a bagagem por algumas horas. não são bem cacifos, são prateleiras brancas com uma cortina de chita que tapa aquilo de que verdadeiramente não precisamos. há quem nunca reclame a bagagem. e há quem chegue tarde de mais, à hora do fecho.
vizinhança
parece um mecanismo muito ao longe ou o ruído de um projector. deve ser o dentista. o dentista descende de uma longa linhagem de dentistas ilustres e menos ilustres, incluindo o dentista do rei dom carlos, conforme atestam os retratos e as dedicatórias fechados à chave no consultório. o consultório foi renovado nos anos setenta e perdeu o encanto das cadeiras de dentista do tempo do rei dom carlos. nos anos setenta forraram-se as paredes a azulejo azul. serviram poucos clientes, apesar da higiene, que a idade já pesava nas mãos e a vista também afunilava, como a língua da vizinhança que espalhava os maus fígados do homem, da padaria ao jardim da parada. é uma figura estranha o dentista. dir-se-ia descolado de uma das películas que guarda religiosamente em casa, mas sem fé que se multipliquem, pois o pé de meia gastou-se de uma só vez no projector. vistas de viena, uma ou outra bobine emprestada pela cinemateca, quando o rei faz anos, e uma reservada para as horas mais solitárias, por conter imagens despudoradas que fazem corar a mulher do dentista. e fazem-na rir também, mas tapando a boca com a mão para não se ver o brilho dos olhos. essas fitas, dependendo do conteúdo da lata, são projectadas, mais cedo ou mais tarde, na empena do prédio em frente. pintada de branco pelo recria. nem de propósito.
deve ser o projector do dentista e, a esta hora, deve ser boa a sessão. se não forem as vistas de viena ou a lata da cinemateca, sobra uma. o drogado do último andar deve andar empoleirado na janela do sótão a tirar fotografias ao filme. foi a mulher do dentista que me contou que o drogado tira fotografias aos filmes indecentes. mas foi a empregada da vizinha de baixo que um dia me disse que ele era drogado. ai sim? então não se vê logo pela gandulagem que sobe e desce a toda a hora?
tenho de dormir, vou pensar noutra coisa. mas ao mesmo tempo não parece o projector. pára e recomeça. pode ser um mecanismo qualquer. um relógio. um brinquedo de corda. vou ver.
a minha janela é grande e tem uma parede à volta que foi rebocada e pintada. não é um vidro pequeno e mal amanhado, preso com massa a uma armadura de metal ferrugento para deixar respirar uma marquise. da minha janela posso debruçar-me. às vezes debruço-me e vejo a mulher do dentista passar a ferro na marquise. e posso ver parte do projector se me debruçar muito. hoje não há filme, mas a fita corre. solta. o projector dorme e o projeccionista afina a bicicleta que nunca dali saiu. no telhado um gato preto tenta esgueirar-se pela janela do sótão. volto para a cama e espero não sonhar durante a hora que me resta.
parece um mecanismo muito ao longe ou o ruído de um projector. deve ser o dentista. o dentista descende de uma longa linhagem de dentistas ilustres e menos ilustres, incluindo o dentista do rei dom carlos, conforme atestam os retratos e as dedicatórias fechados à chave no consultório. o consultório foi renovado nos anos setenta e perdeu o encanto das cadeiras de dentista do tempo do rei dom carlos. nos anos setenta forraram-se as paredes a azulejo azul. serviram poucos clientes, apesar da higiene, que a idade já pesava nas mãos e a vista também afunilava, como a língua da vizinhança que espalhava os maus fígados do homem, da padaria ao jardim da parada. é uma figura estranha o dentista. dir-se-ia descolado de uma das películas que guarda religiosamente em casa, mas sem fé que se multipliquem, pois o pé de meia gastou-se de uma só vez no projector. vistas de viena, uma ou outra bobine emprestada pela cinemateca, quando o rei faz anos, e uma reservada para as horas mais solitárias, por conter imagens despudoradas que fazem corar a mulher do dentista. e fazem-na rir também, mas tapando a boca com a mão para não se ver o brilho dos olhos. essas fitas, dependendo do conteúdo da lata, são projectadas, mais cedo ou mais tarde, na empena do prédio em frente. pintada de branco pelo recria. nem de propósito.
deve ser o projector do dentista e, a esta hora, deve ser boa a sessão. se não forem as vistas de viena ou a lata da cinemateca, sobra uma. o drogado do último andar deve andar empoleirado na janela do sótão a tirar fotografias ao filme. foi a mulher do dentista que me contou que o drogado tira fotografias aos filmes indecentes. mas foi a empregada da vizinha de baixo que um dia me disse que ele era drogado. ai sim? então não se vê logo pela gandulagem que sobe e desce a toda a hora?
tenho de dormir, vou pensar noutra coisa. mas ao mesmo tempo não parece o projector. pára e recomeça. pode ser um mecanismo qualquer. um relógio. um brinquedo de corda. vou ver.
a minha janela é grande e tem uma parede à volta que foi rebocada e pintada. não é um vidro pequeno e mal amanhado, preso com massa a uma armadura de metal ferrugento para deixar respirar uma marquise. da minha janela posso debruçar-me. às vezes debruço-me e vejo a mulher do dentista passar a ferro na marquise. e posso ver parte do projector se me debruçar muito. hoje não há filme, mas a fita corre. solta. o projector dorme e o projeccionista afina a bicicleta que nunca dali saiu. no telhado um gato preto tenta esgueirar-se pela janela do sótão. volto para a cama e espero não sonhar durante a hora que me resta.
guaraná
tomo um e fico leve como uma pena que cai da asa do pombo. lá em cima. dou um pulo e desapareço do laço do prestidigitador para o fundo da arca. entre a tábua e o forro. amarelo torrado, com quadrados azuis muito pequenos que ao longe parecem pintas. seda da china. areops, não estou lá. estou do outro lado da passagem secreta. volto já.
hino
está calor aqui, dentro destas paredes de carne. posso espreitar mas a luz encandeia e fere. tenho tempo. felizmente. tenho pálpebras. não consigo imaginar revoluções, nem pelo som. o som que atravessa a pele. o ultra som. só rebolar na superfície de dentro. na bandeira do meu país que é também cobertor, cortina e chão. e é aqui, só.
l’évidence
se observarmos com atenção é no contorno que encontramos a verdadeira essência. a ideia de que a essência é algo de inatingível, de intangível, é falsa. é um mito que nos conforta a preguiça de olhar. a essência é a marca que fica no mundo. o sítio onde o pó não pousa, a sombra que se justapõe, o decalque, o molde que permite que nos possamos inventar.
acupunctura
sentei-me a olhar e perdi as horas. despertaram-me uns pontos luminosos que muito lentamente me devolveram o espírito, pequenos faróis para náufragos com esperança. tocaram-me e lembraram-me que a noite ia ser quente, que as árvores não são simétricas e que o mundo não é redondo nem é o único mundo que existe.
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