adivinha

vê-se a lua daqui e eu sou lua também
redonda e distante no ponto
diametralmente oposto
o meu corpo telescópio de paredes escoradas
ergue-se como um céu finito de pedra
que aprisiona o reflexo das estrelas
quando as há


fundo
muito fundo
um mundo líquido transparente
habitado por ecos
sobre rios incandescentes

o que sou?

sou um poço
magia de vedor
trava-línguas destravada
locomotiva de fogo
sobre sulipas rasgadas
carris em faísca
de montanha-russa
saliva e sémen de vulcão
sou sede e água gelada
sou lava petrificada
vinte e quatro fotogramas
de cada segundo de vida
sou dedos sou braço sou mão
montanha coral asas chão
sou açúcar sou sal bem e mal
sou o que ouço o que vejo
o que dou e o que me dão
sou núcleo manto e crosta
estrela morta supernova
sou as ruas que me acolhem
sou as ruas que desejo
sou o além sou o aqui
sou os quinhentos anos luz
que me separam de ti
enigma

duas frases impossíveis
entrelaçam-se sedentas
como hera
de encontro a uma parede


a cal recebe-lhes os braços
que se contorcem
confundem e alastram
rebentando em folhas e frutos
procurando-se em profundas raízes
o tempo escava valas de rega
trincheiras invisíveis
múltiplos escudos de minerva
de muitas faces

ao longe
crispações microscópicas
minúsculos incêndios de silêncio
ínfimos cortes com a ponta da tesoura
arqueiros certeiros que apontam aos poros
e uma alma num corpo assombrado
tropeça nas pedras do peito
escolhos onde esfola os joelhos

um minuto de esperança
quinze palavras perdidas
e um dia
por pura teimosia da voz e da vida
nasce na hera em sobressaltos
uma flor
que se abre a medo em fonema
demasiado breve
demasiado curto
pequeno demais
para cobrir as feridas
kintsugi

sair de dentro das paredes
da caixa de ar entre as fiadas de tijolo furado
depois de dormir metida nos roços
da luz e da água
e de escavar sonhos de lã de vidro
janelas para árvores de folha persistente
grãos de vida
e montes de morte
em contínua derrocada arenosa
que aprendi a aparelhar

faço-o como fazem os brinquedos
de todos os quartos de infância
como uma ninja
como uma aparição
ninguém nota ninguém sabe
que vivo no avesso das coisas
é lá que sou

quando me vêem voltei a mim
com veios de ouro
a prender-me a vontade e o desejo
às fases da lua e à rotação da terra
às marés e aos incêndios
aos ventos que não me levam tudo
e àquele sítio entre os lírios onde brincava
a minha casa de folhas verdes
rigoroso decalque
da história que a mim me contava
mãe,

ando a catar os pontos das minhas vírgulas
um a um com um cotonete embebido em lixívia

são micro-alvos para todas as acutilâncias
caixas guardadas por mil pandoras
macro-poços de todas as existências
berlindes pesados nos bolsos de duas crianças
parasitas que me travam as horas

a ti que penduraste uma vírgula no meu ponto
dedico as folhas intumescentes
que brotam neste estranho calendário
árvore de raízes expostas
duas vezes nascida do mesmo ventre
vivo no fio do papel
acordo com cortes sem espessura
que não sangram
não ardem não latejam
mas demoram mais tempo a fechar
e doem em linha recta

é por aí que se infiltram as palavras
sobretudo as palavras dos outros
palavras metálicas que picam
e ficam
que chocalham quando entrechocam
e me obrigam a contrariar o movimento natural
para que não me saiam por outras bocas
famintas sedentas
bocas que trago na ponta dos dedos
ávidas sôfregas de gritos
brados berros bramidos
e constelações de cicios

por isso nunca gostei de correr
diziam-me que não sabia
quando o que eu não sabia (nem sei)
era emudecer
há um momento em que te desvias dos postes
e dos troncos das árvores
por instinto
os olhos enfaixados com a gaze puída do passado
para que não te esqueças de quando sabias ser
por cima da gaze os óculos graduados
sujos de pólen e de lágrimas secas
como se te chovesse dentro de casa
e cada dia um tipo em chumbo, corpo 24, caixa alta
tomas-lhe o peso com uma mão
(não percebes por que ordem te aparecem)
e junta-lo aos outros no saco de pano
que a custo manténs acima do chão

antes de teres passado fechavas os olhos
e fazias questão de não acender a luz
quando te levantavas da cama
conhecias cada palmo de parede
entre cada aduela do corre
dor
das tuas casas
as tuas casas eram só uma
uma casa bonita com falhas nas aduelas
que lias com a ponta dos dedos
e traduzias com o teu sangue
sobre as paredes brancas
numa caligrafia indizível

querias saber em que que se tornara o mundo
para o teu pai
a partir do dia em que deixou de ver
então fingias-te cega
como se cega conseguisses vestir a pele do teu pai
andar sobre os seus pés como fazias em pequena
descobrir o sentido com os dedos
onde eles chegassem

antes de teres passado eras muito mais cega que o teu pai
e quando viste pela primeira vez
doeram-te os olhos, doeu-te tudo
do
eu

doeram-te as casas
e as suas geografias
as frases que escreveste só com a maiúscula de cada palavra
as frases que sobrepuseste para que só tu as conseguisses ler
(outras geografias)
as frases que escreveste em espelho
para que fossem o embaciar da tua respiração
e o seu contrário
e as que nunca escreveste por medo e vergonha
(a tua geografia)

a paisagem agora tem forma
e tu tens os tempos todos contigo
os tipos de chumbo foram ficando
em bancos de jardim
em casas de amigos
em mãos que apertaram as tuas mãos
são o manual de instruções
do mecanismo complexo que te anima

e aceitas esta nova cegueira
que é só tua
única e nua
até que o mundo te queira

que vontade de me deixar ir

o escorrega é enorme e tem um alto a meio
sei que vai fazer aquela impressão na barriga
sei que vai ser bom
que me vou esquecer de tudo
na vertigem da descida

sei que vou fechar os olhos
que vou sentir as folhas do ramo mais baixo
tocar-me no cabelo em desalinho
mas já não haverá nada a fazer

as cores já não terão cor
as formas não terão forma
os dias não terão horas
o peso não terá tamanho
e cada pecado
perderá o seu preço

restará a memória
a minha feita em massa de bolo
a dos outros o açúcar
com que enganei os tolos