lista de casamento

eu não quero um sofá Chateau d’Ax
châteaux tem chapeau, para já
não quero o meu rabo a roçar em pele Family®
quero roçar-me em cem por cento algodão
não quero sentares sintéticos
não quero design inestético
não quero déperlant
quero um sofá que me coma as nódoas e o corpo
abandoná-lo em puro des conforto
e segu ir
decanter
gostava de saber de cor todas as espécie de pássaros, todos os países do mundo, todos os tipos de nuvens, todos os nomes de ventos, todos os afluentes de todos os rios, todas as letras e acordes de todas as canções, todos os versos de todos os poemas, todas as pontes e miradouros, todos os traços de todos os rostos, todas as linhas de todas as mãos, todas as receitas, todas as mezinhas, todos os percursos de todos os pontos para todos os lados, todos os horários de todos os transportes, todos os tipos de papel, todas as línguas de todos os povos, todas as pedras semi-preciosas, todos os comandos, todos os passos de dança, todas as árias do bel-canto, todos os ossos e todos os músculos de todos os seres sem existência, todas as anatomias de todas as vozes, todos os ângulos, todas as inflexões, todas as temperaturas, todos os abismos e promontórios, todas as geometrias, todos os sedimentos, tudo o que mate a sede
o dia está amarelo
o ar comprime emplastros contra a pele húmida
benevolente
a casa recebe-me com uma janela de luz

entro e não fecho a porta

num quarto uma criança dorme
noutro quarto um homem morre
ambos os sopros se confundem
num diálogo inaudível
o sopro da existência que desiste
o sopro da inocência que resiste



(8 de julho de 2010)
anamnese

sofro
de obstipação emocional unilateral
tenho de fazer um clister a uma aurícula e a um ventrículo
e de laquear a veia do nariz
para me vedar a coágulos e a cheiros espessos
e comer uvas
uvas lavadas na água da chuva
e comer maçãs
maçãs lavadas na água do mar
ir
com as marés
chegar
ao contrário das fases da lua
ficar
onde tudo permaneça em movimento
e
terno
tempo

não percebo estas temperaturas
estes assomos de calor que se viram do avesso
à velocidade das estrelas
e me espetam hipotermias debaixo da pele
não me desloco à mesma velocidade dos outros
a passadeira rolante parou
é o mundo que se desenrola atrás de mim
e eu cada vez mais curva, mais feto

consigo
tocar-lhe
ao
de
leve
espero que me nasçam novos sentidos
espero não renascer prematura
espero nascer perfeitinha
com os dedos todos
os órgãos arrumados nos sítios certos
o tempo arrumado no sítio certo
procuro um ponto de fuga nesta dimensão
não quero este espaço-tempo contínuo
esta e terna rel atividade
por enquanto
vou enrolando o mundo em bobine
no outro extremo
uma peça de tecido perfeita
para transformar em vestidos

quando tiver idade
casa alta

da janela da cozinha corre um céu até ao chão
(desprendem-se-me dos olhos constelações de pirilampos)
e o rio de mel que jorra das vozes pequeninas
junta-se à seiva das árvores
ao pulsar quente da terra
e a um corpo nu, líquido e frio
que já foi meu

visto-me de novo de casca
visto-me de vento, de concha, de casa
visto-me de porta e de degrau
sou levada pelo levante
descalça
com pés de gravilha
de estrada, de terra, de seixos
por muros, muralhas, montes, pontes, pinhais e montados
(ínfima sombra neste dia que se abre
como uma caixa que guarda um imenso clarão
e que demora a nivelar a cor do horizonte)

o voo espavorido das aves cobre-me de luz e de penas
e morre-me muitas vezes o mar quando chego
para poder renascer no tempo certo
a cada bater de asas
a cada derrocada de pedras
a cada sopro, cada choro
e a cada respiração


melides, 24 de agosto de 2012


















a walk in the woods

strange fruits and dead leaves
emerge proud and precarious
like metaphors
gently swaying in the summer breeze
mildly toxic, mildly sweet
invisible to the optimistic eye

unmoved by their slow decay
strong and brittle
so fiercely delicate
feeble, frail and yet so stern
they outlive
the occasional specks of colour
that life spits in my direction

rapazinhos
só me foram levar à escola no primeiro dia de aulas. não fiz pré, entrei para a primeira classe, mas já lia desde os quatro anos. a partir do segundo dia passei a ir sozinha, com a minha pasta cor-de-laranja e o cesto com o lanche, pelo passeio que contornava as pracetas, antes de os jardins terem dado lugar às flores de lata com rodas. tinha de atravessar apenas uma estrada preta, o resto do caminho parecia ter sido feito por medida para me levar à escola, e eu devia parecer uma espécie de judy garland com totós loiros. como já conhecia as letras, podia distrair-me à vontade com o cheiro dos lápis e do estojo, com a textura dos cadernos, com o tilintar das pulseiras da professora, com a inclinação da carteira que trazia o assento agarrado e com a extraordinária t-shirt dos marretas, muito brilhante de tão sintética, do menino sentado ao meu lado. pelo caminho apanhava umas flores cor-de-rosa que tinham dentro uma gota de um líquido doce. nunca menos de cinco ou seis. bem as provo agora, sempre que as vejo, mas ainda não encontrei uma que me devolvesse aquela sensação de doçura e pergunto-me se a terei perdido na minha boca.

frango com esparguete

dois corpos
dois copos vazios
um corpo
janelas fechadas
almas escancaradas
dois corpos
a mesa posta
o jogo na mesa
quatro pratos sujos
a televisão acesa
regime

um candeeiro redondo
improvisa-me uma lua
cortesia da autarquia
espero que alguém chegue
enquanto espero que a vida chegue
enquanto espero que portões se abram
para deixar passar a vida
com balões e bolas de sabão
um sorriso à prova de água
uma bicicleta sem rodinhas
uma paisagem perfeita em rolo
e um piquenique sem bolo
insónia

a cada inverso
da canção
des
cubro-me

Era uma vez um homem que vivia num umbigo

Um umbigo impecável, cicatrização perfeita, sem cotão, nem migalhas, nem qualquer tipo de desperdício. O homem passava os dias em círculos, acariciando os anéis concêntricos de carne ou embrenhado em estudos hipsométricos. Tudo o interessava naquele umbigo e quando subia à pequena elevação central, espécie de altar à existência, sentia-se o homem mais alto do mundo, embora os olhos esbarrassem na pele rosada e fina, quase imberbe. Dedicava também uma grande parte do tempo à higiene. Limpava o umbigo de alto a baixo, todos os dias, com produtos não abrasivos e um pano quadrado de microfibra com o tamanho ideal para a sua mão. Depois lavava o pano e lavava as mãos, num ritual quase religioso.

Não tolerava invasões de qualquer espécie àquele espaço sagrado. Não recebia amigos. O umbigo bastava-lhe. Amava o umbigo.

Por vezes olhava para cima. O exterior não lhe provocava grande curiosidade, mas fazia-o por uma questão de sociabilização que, segundo os especialistas, era essencial à sobrevivência humana. Confiava nos especialistas. Nesses dias vestia um pólo e umas calças e contemplava os fragmentos de pessoas que desfilavam pelo seu campo de visão. A visibilidade era reduzida, claro, mas achava graça ao facto de não ver mais do que via, desde que visse sempre o seu umbigo de qualquer ponto onde se encontrasse.

Desenvolveu uma linguagem muito própria que, escusado será dizer, esbarrava não poucas vezes na linguagem dos outros. Embates mais ou menos violentos, consoante a profundidade do umbigo a que se encontrava. Nesses dias nem o pólo, nem as calças lhe valiam. Ficava nu. Exposto. Totalmente vulnerável ao escrutínio alheio. Sacudia o incómodo com a desenvoltura das suas certezas e regressava à sua casa de carne.

Não cresceu muito, não podia. A alimentação pobre, quer para o estômago quer para o espírito, deixara-o raquítico, mas ao espelho era maior que qualquer moldura e achava que não havia, nem neste mundo nem em qualquer outro, espelhos suficientemente grandes para si.
Acabou por morrer de fome sem perceber. Quando adoeceu achou-se injustiçado e, ainda assim, teimava em não receber os cestos de comida, remédios, amor, música e livros que lhe tentavam, em vão, fazer descer com recurso a uma corda, ao fundo do seu umbigo.

Quando morreu cuidou que adormecia.
natureza morta

uma mulher de verde lava as portadas verdes
só a vejo quando passa pela parede
e enquanto lava
vejo um braço que acena
para dentro
da grande casa vazia
um pássaro pousa no cimo de um pinheiro
como uma estrela
simples enfeite
e hoje as nuvens resumem-se a riscos no céu
linhas brancas horizontais
pauta celeste por preencher
uma parte em diagonal da árvore-antena
como um tufão congelado no seu propósito
um sino dobra ave-marias gravadas
e a brisa desdobra-se em sopros estéreis
para empurrar um moinho de papel
ja
nela

um quarto branco
paredes brancas
chão branco
uma cama branca
uma c
ama branca
uma
arma branca
uma
ama
chão
pa
redes
dor dormente dor presente dor de dentes
dor de corno dor de sono dor de costas
dor de mágoa dor de água dor de amor
dor de peito dor sem jeito dor sem dor
dor de nada dor de fada dor de flor
dor de sentir dor de sorrir dor de não ser
dor de safo dor de sátiro dor de dar
dor de pé dor sentada dor espraiada
dor metástase dor anástrofe dor quiasmo
dor de asno dor de burro dor de murro
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dor dor dor dor dor dor dor dor dor
dizer até perder a cor

canícula
são nove e meia mas não parece
está um calor que arrefece
entre voos de andorinha e tacadas
ouve-se um homem a cortar uma sebe
preferia ver vacas no verde
a homens iguais perseguindo buracos
uma colecção de sucessos
troféus com patas, inertes
eu continuo com má circulação
tenho as pernas feias, raiadas
os poros do avesso (é a explicação científica)
e vergonha de andar de saia
antes fosse motosserra
primeiro dia de verão

era um dia de lágrimas. assim se chamavam as tempestades naquele país, aquelas tempestades que parecem sacudir violentamente a terra e dividi-la em gomos como um brinquedo de plástico. ela, aguarela, afundava-se num sofá vermelho que, por acaso, encontrara no caminho, julgando poder assim proteger-se da chuva, os braços abraçando o braço do sofá. ao fim de pouco tempo a pele, o vestido branco e o vermelho do sofá deram lugar a uma só cor.
esteve ali muito tempo. ou pouco tempo. ou tempo nenhum, já que o tempo parecia ter estagnado naquela cor líquida.
pela porta verde do caminho entrou um sujeito impecável, impermeável, protegido por um paralelepípedo de plexiglas. como uma bisnaga, caminhava muito direito, sempre com a tampa enroscada e os rótulos irrepreensíveis. perguntou-lhe, acrílico, o que tinha, espremeu a expressão mais condoída que conseguiu, quis saber se podia ajudar. ela explicou que não, a menos que conseguisse desligar a tempestade que a ensopava e ele retorquiu que até ouvira falar da existência de um botão stop, mas não sabia onde se encontrava, se dentro se fora. a mancha liquefeita não parava de crescer e isso parecia incomodá-lo. fez-lho saber. sabes, eu sei que, mas. é que contigo aí não posso passar, seguir o meu caminho, percebes. não fica bem, eu que ando em linha recta, pôr-me agora com rodeios.
ela pediu-lhe um abraço. esperava, com isso, conseguir soltar-se das fibras vermelhas do sofá, respirar fundo e disfarçar os vincos do vestido. ele assentiu.
desprendeu da cintura um molho de chaves e abriu as duas fechaduras de cada uma das portinholas transparentes por onde fez passar os seus dois braços de polipropileno. abraçou-a como um aranhiço, um abraço sem espessura.
ela contentou-se, levantou-se e dirigiu-se a um espelho embaciado onde desenhou, com o indicador, dois olhos e uma boca. agradeceu e saiu de cena.
e de espectro espantado quando visto
passou a peso de balança
grande, castanho e ferrugento
obsoleto
maior que o prato
maior que o contrapeso
em desequilíbrio constante a um canto
devia ser coxa ou muda ou cega
e é, na verdade, tudo isso
coxa, muda e cega
traz os bolsos cheios de papéis rasgados
outros que não rasgou mas há-de fazê-lo
e traz as mãos sempre dentro dos bolsos
por não saber o que fazer com elas
muito menos com as impressões digitais
que deixam marcas
graffitis invisíveis de festas
que só se revelam nos vidros das janelas
nos copos e nos pedaços de fita cola
que corta com os dentes
e de cada vez que o faz
cai-lhe um dente
e um olho
e um braço
cai-lhe depois o coração
e o outro olho
o outro braço
as pernas há muito que fugiram
resta-lhe a pele de fingir
insuflada
que não é nada
mas há-de ser
uma coisa qualquer
festa

estou cheia de algodão doce
uma tristeza cor-de-rosa
pegajosa
presa a um pau
tenho artérias de açúcar
que me levantam os cantos da boca
e um coração esponjoso
em forma de marshmallow
sou querida
sou ferida
au
na piscina azul
bóiam bolas, baldes, pranchas
e armas de criança.
a água embala-as,
adormece-lhes os tiros de água
enquanto os risos e os gritos
se lançam na sua trajectória ascendente
rumo à terra do nunca.
em breve todos estarão a dormir
enquanto um ou outro carro passa
um ou outro mocho pia
um ou outro velho morre
um ou outro ladrão vê
qual a melhor maneira
de arrombar o portão verde.
prendeu-se um fio numa cerca que saltou com toda a graça e cuidado, mas a corça saltou do telhado e era só aparente a leveza. o vento engolia a distância. viu-se nuvem sem o novelo que, sem ver, se esvaía em vermelho. sem nós, sem a malha repuxada, o chão sabia-lhe a nada, o pêlo a penas de garça, a corrida a devoção e as constelações a novenas que alguém ali pusera em seu nome. quando parou era uma árvore velha e oca, alimentada por correntes de ar, coberta de folhas que escondiam um ninho e com raízes profundas, até ao centro do mundo. sem seiva, mas teimosa de vida, pulsando dias secos de céu azul.
live action
foi assim: numa tarde de fim, encostei a via verde ao vidro e em vez de travar acelerei, em direcção à cabina ao lado. rebentei com a cancela.
foi só assim, só narrativa, sem poesia e sem testemunhas, sem claquete, sem repetição.
atrás de mim ficou uma extensa ficha técnica que não vi, desenrolando-se por um tempo que não determinei, lida por alguém que não conheço e com um parágrafo de agradecimentos por tudo e por nada.
soube bem ser protagonista.
espelho

– Vá, sobe.
A voz parecia diferente. Menos grave, talvez. Era uma voz feita de braços, mãos, dedos, ombro. Subiu.
– Vês?
Não via. O escadote hesitava e a cada balanço as pálpebras aumentavam exponencialmente de peso, tornando-lhe impossível abrir os olhos. Tacteou o resto da subida.
– Vês?
Fugiu das lascas do escadote para a superfície lisa e gelada a que este se apoiava e consolou as palmas das mãos. Ao chegar à aresta, percebeu que também o seu corpo deveria dobrar-se em ângulo recto para que as pernas pudessem juntar-se àquele movimento subitamente horizontal.
– Vês?
Lá em cima, dobrou-se como um metro de madeira. Desdobrou-se. Virou-se. Sentiu a respiração embaciar a superfície. Limpou a humidade com a mão e a mão à pele. Fechou-se como um feto.
– Vês?
Não saberia dizer mais nada? Ou estariam os seus ouvidos a coar o resto das palavras? Os olhos ainda enterrados.
– Vês?
Lembrou-se dos gatos. Não gostava de gatos. Mas lembrou-se dos gatos. Lembrou-se das árvores. Do vento nas árvores. Das árvores jovens vergando com o vento. Lembrou-se de um documentário em que se via uma girafa a nascer. Lembrou-se dos frutos a brotar dos ramos das árvores, intumescentes.
– Vês?
Doíam-lhe os olhos. A luz branca feria-lhe as órbitas. Os braços em curtos semi-círculos tentavam estabilizar-lhe o corpo.
– Sim. Acho que sim.
Sobressaltou-se com a pontada de ar que sentiu nas costas e demorou alguns segundos a tentar perceber aquela lambidela de gigante gelado que lhe percorrera a coluna e depois as pernas em movimentos descontínuos.
– Já vais ver.
Um enorme pincel invisível cobria-lhe cada centímetro de pele com um líquido viscoso e frio. Como se uma nuvem carregada se roçasse querendo fazer-se vestido à força.
O frio apaziguou-lhe as pálpebras. Conseguia finalmente abri-las, mas conservou os olhos semi-cerrados enquanto contemplava o azul celeste do rio, ao fundo.
– Vês?
– Onde?
Tentou ver-se, mas as janelas, as paredes e as portas confundiam-se num padrão complexo de sobreposições oblíquas. Aqui e ali uma réstia de céu. Mais paredes, chaminés, alcatrão, carros, portas, janelas, paredes. Olhou em volta. As mesmas paredes, janelas, portas e chaminés. Mas quietos. Os mesmos carros e ruas. Quietos. Os mesmos buracos na estrada. Olhou de novo para si. O mesmo padrão. Olhou de novo para si. O mesmo padrão. A voz triunfante reflectida em lábios gretados, dentes, língua e saliva.

mercês

estou na estação
um negro alivia-se na esquina
e um mickey grafiti
shows me the finger
estou na estação
agora já não se compram bilhetes
é simples: carrega-se um cartão
(eu até tinha um cartão que me tinham dado
mas disseram-me que tinha caducado)
estou na estação
descobri à primeira
como manobrar os torniquetes
e vi que o pica já não pica
também já não se fuma na gaiola
e já ninguém viaja pendurado
agora o povo viaja sentado
sinto-me quase estrangeira
não sou daqui
quase não vou aqui
mas vou inteira

pós-revolução
dois aviões de guerra passam por cima do portão
e desaparecem atrás de um telhado
depois mais um e mais outro avião
videogames com o dinheiro do estado
são feios como o dia que se pôs
cortam o céu  às tiras como tesouras
e fazem um ruído estéril de lâmina romba
eu, pelo menos, estou doente
e não se nota
não poluo, não me imponho
e ainda sonho
mesmo que não voe
a cinza prendeu-se à teia
e eu, sem medo da aranha
enxotei-a para fora
tenho filmes e capítulos pela frente
filhos e casas para habitar
e vejo que as ervas estão em flor
flores feias são flores
mesmo que se enganem na cor
revolução

no quintal o limoeiro teima em carregar-se de limões
e a salsa espalha-se como erva daninha
mas não é
lá dentro
a minha mãe está no youtube
a aprender a pintar rosas
e a desenhar narizes
e eu a traduzir um romance
sobre pessoas infelizes
enquanto a chuva lava as ruas
(diz que é bom para as alergias)
e cancela programas de fim-de-semana
(visitas ao jardim zoológico
trocadas pela urgência do supermercado)
hoje é o feriado dos cravos
mas nem vê-los no continente
muitos aproveitam para ir ao cemitério
outros ficam em casa
presos a filmes requentados
alguns nunca se levantam
outros acordam sentados
prioridade nas rotundas

ainda vou ver o teu perfil de vez em quando, sim
para nada
e ainda sei o teu número de cor
para nada
mas já não me rejo pelas tuas horas
e muito menos pelas tuas desoras
um dia
há-de regressar a cor às minhas unhas
que trago, por estes dias, maltratadas
de tanto esgravatar para sair de dentro de mim
hei-de pintá-las de vermelho desejo
de sentir o rosto
de sentir no rosto
de sentir
e de os
tentar um sorriso menos amarelo
lá para junho, talvez
no tempo das cerejas
no tempo das cervejas
no tempo quente
no mês em que fui mãe
pela primeira vez
and they lived happily ever after

falta-me fazer uma coisa
ir ao baú das ideias
entrar pela porta da rua pedonal
e comprar aquela peça em espiral
que um dia imaginei sobre uma mesa
depois atirá-la ao chão e parti-la
fotografar cada caco
e inventariar cada sopro
que derrubou a minha casa inventada
não quero esquecer nada
quero lembrar-me de cada ferida
de cada mentira, de cada investida
de cada acto falhado
de cada gesto, de cada beijo
e do desejo
de nada
estou sozinha com o vento
a noite, o frio e o fumo.
nem os cães ladram
nem as nuvens sucumbem
à luz dos candeeiros de rua,
estrelas artificiais
penduradas em postes.
o sol não chegou
para acender as lanternas
fotovoltaicas
que se vão destruindo
ou despindo, não sei,
na sua dança redonda,
planetas apagados
de uma galáxia de poliéster.
comi chocolate e bebi café,
depreendo, por isso,
que estou aqui.
senti o frio como um raio-x,
depreendo, por isso, que estou.
não sei se algum dia serei,
se algum dia os meus gestos
se desprenderão da alma.
por enquanto não sou mais que uma esfera,
uma amálgama de matéria, reflexos e dor,
presa por dois fios prateados
muito finos e fortes,
ao tecto de um quarto
que reclama por luz.
há pássaros que cantam
nesta noite fria
nesta noite sem lua
nesta noite sem estrelas
coberta de nuvens agoirentas
cor-de-laranja
os cães ladram todas as noites
(toda a noite)
as rãs coaxam
mas pássaros não me lembro de ouvir
se não hoje
talvez estejam felizes
ou confusos
ou pedrados
ou talvez cantem para só mim
tenho duas almas que me prendem à vida
dois cordões de luz
presos ao fim do infinito
sou uma marioneta que abraça e que beija
e que finge ter pele e carne
em vez de pasta de papel
não como
alimento-me dos seus sorrisos e das suas birras
alimento-me das suas descobertas
ando à boca do palco
com passos quase perfeitos
da saída esquerda para a saída direita
e vice versa
os meus olhos não mexem
se não mexer o corpo todo
mas estou
ainda estou
aqui
neste lugar sem espaço nem tempo
neste chão e neste céu de amor
tocata
faz amanhã (sexta-feira santa) duas semanas, caiu-me um piano em cima. a culpa foi minha. fiquei perplexa a olhar para a improbabilidade de ver um piano no ar, a ser içado para uma janela que nunca antes vira aberta. o homem que agarrava a corda deve ter ficado perplexo por me ver ali parada e distraiu-se. ou assim. e o piano abraçou-me com as suas patas, fracturando-me vários ossos, fracturas expostas, feias. mordeu-me com os seus dentes brancos de madeira de tília que ficaram espalhados pelo chão à minha volta. cortou-me com a tensão das suas duzentas e trinta cordas de aço. estou em convalescença. envolvida em gesso branco que me dá comichão. as dores são muitas, mas o que mais me doeu foram todos os prelúdios, tocatas e fugas que se abateram sobre mim e que naquele piano não mais soarão.


strawberry passion

é elástica a dor
expande-se e comprime-se
de acordo com o seu acordo
mastigo-a compulsivamente
receio perder-lhe o sabor
mastigo-a com os ossos, com as veias, com os pulmões
perfuma-me
emulciona-me
pre
enche-me
o pára-brisas cheio de flores
pontua-me a estrada
migalhas de pão
e a lua perfeitamente centrada
na esquadria da janela
per
feição
hoje

fui
à
ama
dor
a
tapei-te os medos com ligaduras
embebidas em mel cicatrizante
meticulosamente arrancadas
à minha própria pele
dando nós pequenos
quase invisíveis
que não se prendessem na roupa
sorvi-te os grãos de ansiedade
como pólen que transformava em tempo
bebi-te as palavras ínvias
com os meus lábios feridos
que não chegaste a sentir
ficou-me o travo amargo na boca
a ferida no lugar da pele
e o frasco vazio do mel
que hei-de lavar com água quente
para aquecer as mãos
e reutilizar um dia
sem tampa
conta
minaste-me
a esperança
conta
minaste-me
as ruas
roubaste-me a voz
– menos a voz do sangue
que insiste em saltar sobre os escolhos,
profundo lençol freático de vida
que me prende a pele ao arame como molas –
tapaste o buraco no meu peito
com alcatrão a ferver
e hoje sinto sobre mim
a chaga aberta
de todas rodas de todos os carros
cheios de corpos
vazios de gente
todas as trajectórias
num atropelo constante
num atrope
lamento
sinto o corpo carbonizado
pela falta
pelo excesso
tenho de limpar do meu corpo uma cidade inteira
com todos os seus cruzamentos e intersecções
todos os seus lugares de estacionamento
todas as pessoas que se entrechocam
nos solavancos das horas
trazem esse teu olhar de estrada
quente e negro
vazio de céu
tenho de arrancar do meu corpo todos esses passos
até ser uma rua inteira e limpa outra vez
ladeada de jacarandás sem memória
que hão-de perfumar-me de anil os dias novos
afonia

tenho uma cavilha no coração
uma cavilha ou um botão
não distingo bem
por entre a dor
infecta e espessa
que se sobrepõe ao sangue
a dor de as coisas muito pequenas
pesarem muito mais que as grandes
colarem muito mais que as grandes
servirem muito mais que as grandes
estilhaçando-as

tenho algo no peito
onde não posso tocar
muito menos com a voz
sob pena de virar
gra
nada
sísifo

ainda as sinto
frias
as tuas mãos

duas feridas
nas minhas costas

não sinto a vertigem
não sinto o vértice
não senti a subida
senti o nada
sen
ti
o corpo em pedra
o corpo em cera

círio, cílio
fim do ciclo
tarde azul

sigo pela berma do caminho, dedos com calcanhar, para pisar as folhas mortas que se amontoaram contra o canteiro. gosto daquele crepitar, embora me recorde sempre o jardineiro mau que nos perseguia pelo meio das malvas até à pedra-mota do meu primo. eu costumava esperar que as malvas secassem e desfazia-as com as minhas mãos pequeninas, numa espécie de jogo da glória, cujo prémio estava em cada casa: uma mão cheia de som e textura, um cheiro acre, quase bom.
um dia o jardineiro apanhou-me em flagrante a cortar os bifes para o almoço: duas ou três folhas de lírios que eu me preparava para juntar à panela. estaquei, gelada, a olhar para aquele homem enorme e velho, com um fato de macaco azul, uma grande mangueira na mão e cara de zangado. não me lembro do que disse, só me lembro da sua bocarra a abrir e a fechar, em câmara lenta como nos bonecos, pronunciando sons inaudíveis, e do calor líquido que escorregou pelas minhas pernas abaixo, regando os lírios com o meu medo.
a minha mãe saltou de dentro de mim como uma leoa e espantou o homem mau. levou-me para dentro ao colo, lavou-me e mudou-me as cuequinhas às flores cor-de-laranja. passei o resto da tarde ao sol, a fazer sopa de flores e bolos de terra.
ying yang

ela odeia roxo e pinta a unhas de azul. não fuma, mas comprou um narguilé num bazar. por ser bonito. quer pintar uma parede de cor-de-laranja a condizer. um dia. quando tiver uma parede. ama como quem come e faz bem as digestões. tem onze livros, quatro do paulo coelho e um do miguel sousa tavares. e tem o segredo. gosta de fruta, sabe línguas, mas escreve com erros. é assertiva e territorial, porque é assim que tem de ser senão. está em todas. pois claro.
ele odeia vermelho e acha que vive com paixão. caminha curvado na sua arrogância discreta. não tem compaixão. tem dores de estômago. não gosta da repartição. não tem paciência. gosta de experiências. não gosta de consequências. guarda coisas para si e isso basta-lhe. isso basta. tem muitos livros de muitos autores que não lê, mas que servem para isolar janelas e calafetar armários fechados. tem frio, mas não usa edredão. está em todas, mas não está. é escuro.
contacto

sofro
de astigmatismo profundo
de irregularidade
na curvatura da córnea transparente
ou
de falta de homogeneidade
na refracção dos meios transparentes do olho
vejo bem
vejo as pessoas
como nuvens de fumo sem contorno
e à noite
vejo as luzes como estrelas
não leio ao longe
e quando consigo ler
geral
mente
é t
arde
de
mais
telescopic walking sticks

de manhã
meço os cigarros em distâncias
da rotunda nova à rotunda da escola
da subida do paço à rotunda da fonte
da rotunda feia à entrada do parque
do parque à porta
são quatro
um para cada cavidade cardíaca


sísifo

ainda as sinto
quentes
duas mãos

tuas

duas feridas
nas minhas costas

não sinto a vertigem do vértice
não senti a subida

o corpo no lugar da pedra
não sangra

res
vala

escorado por memórias
sem peso




(foto :: kamil vojnar)
dieta

no precário equilí
brio das horas
balanço o meu peso
peso o meu balanço
e não consigo andar direita
a dieta não se compadece
do lastro
e a gravidade suga-me a alma
mais do que devia
de dia
arrasto um saco de sombra
que o sol me impõe
à noite
sou toda sombra
e arrasto-me
saco de pele e s
obras
spleen

uma gaivota desaparece
atrás do som do sino das quatro
um melro sobe a uma ruína
e eu es
calo-me,
por mim acima,
fio de prumo, fio de fumo
imóvel numa cadeira de plástico

p
asseio

sol
i
dão
sol
i

l
ama
líquen lamiré
dois ou três passos
atrás de cada pé
fumo flores geada
a curva ao fundo da estrada
e eu num pino perfeito
de joelhos contra o peito

bebo chá
bebo chá e fumo um cigarro ao sol
bebo chá
bebo chá sem açúcar
bebo chá
bebo céu
bebo chão
bebo tempo
beijo o fumo
beijo o vento

janus

é estreito o corredor desta casa
há que passar de lado
roçando os ombros, o peito
as coxas e os calcanhares
a dada altura o corpo é parede e a pa
rede corpo
como se a verticalidade se impusesse
numa espécie de ética física
talas em vez de pórticos
um corredor sem portas
que desem
boca não se sabe onde
a cal cobre a pele de pó
e os dedos deixam um rasto de estrelas
sem frente nem verso


Tenho os pulmões encharcados em choro seco,
uma rocha plana que me aconchega o peito.
A tampa da escrivaninha
do meu quarto de menina
escondia papéis amachucados
com frases sobrepostas,
aparas e copos sujos de chocolate.
À frente, no seu suporte perfeito,
duas canetas
só para enfeitar.
Sempre gostei do cheiro das aparas
e dos bicos de lápis desfeitos,
o cheiro a estojo fechado.